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Havia a chuva. De repente veio o trovão seguido de um relâmpago e, logo, o terremoto e o incêndio. Por fim, um furacão. Como se todas as desgraças naturais chegassem a um só tempo, elas despencaram sobre o edifício de três andares localizado no número 7.305 da avenida Washington Luiz, em frente a pista principal do aeroporto de Congonhas. Setenta e duas horas depois, ainda não se sabia ao certo quantas pessoas haviam sido atingidas pelo horror que caiu do céu. Pelos cálculos de três funcionários ouvidos por ISTOÉ, mais de 100 trabalhadores encontravam-se nas dependências dos oito mil metros quadrados do prédio da TAM Express, a subsidiária que presta serviços de transporte aéreo de encomendas para o Brasil e o Exterior. Segundo a TAM, eles eram cerca de 60.

O prédio da TAM Express é uma mistura de garagem, depósito e escritórios. No térreo ficava o balcão de atendimento e o setor de cargas, por onde estacionavam caminhões para entregar e receber encomendas. O lugar, de pé-direito alto, era contíguo ao grande depósito, lotado com caixas e envelopes. No segundo andar estava o setor de envio de correspondências internacionais. No terceiro, os escritórios do departamento administrativo. Durante a semana, a TAM Express tinha funcionários trabalhando nas 24 horas do dia (aos sábados e domingos, o expediente se encerrava às 22 horas). Portanto, apesar de já ser início da noite, o local permanecia cheio na terça-feira 17, quando um som muito diferente do rotineiro ruído das aeronaves cortou o barulho da chuva, prenunciando a tragédia.

O TROVÃO
“Trabalho há quatro anos na empresa. Estou acostumado ao barulho das decolagens e aterrissagens. Mas o som que ouvi era muito estranho. Parecia que um avião estava dentro do prédio. Um colega até comentou isso comigo.”

Marcelo, 37 anos, funcionário do setor de cargas, não teve tempo de responder. Imediatamente foi jogado contra a parede oposta a que sofreu o impacto do Airbus. Levantou atordoado e, na seqüência daquele trovão, ouviu gritos e choro, enquanto lançou o olhar em volta à procura dos colegas. Gritou para todo mundo correr, pulou da plataforma de cimento onde os caminhões encostam para carregar e, em desabalada carreira, desceu a avenida. Como a maioria dos sobreviventes ouvidos por ISTOÉ, prefere não dar o nome completo por medo de perder o emprego.

O RELÂMPAGO
“Trabalho na área de raio X. Estava com um colega quando ele gritou: ‘Pula, pula!!’ Pulei para fora do prédio sem entender o que acontecia. Logo veio um barulho ensurdecedor que parecia uma bomba explodindo e um clarão.”

Antônio José de Souza, 54 anos, casado e pai de três filhos, trabalha numa empresa prestadora de serviços para a TAM. Depois daquele flash incandescente, se viu lançado da mesma plataforma de cargas em direção ao solo, pouco mais de um metro abaixo. Caiu em pé e no mesmo instante partiu. “Corri de medo para longe dali”, diz ele. “Renasci.” Quase todos, como ele, escaparam sem se dar conta do que estava por vir. Depois que a aeronave arrebentou as paredes do edifício, o inferno começou.

O TERREMOTO
“Estava com meus irmãos Osvaldo e Paulo César no primeiro andar. Fazíamos o carregamento de nosso caminhão com as encomendas. Só escutamos o barulho do estouro. Fui arremessado longe. Quando consegui voltar, os dois estavam lá, com uma parede sobre eles."

 

 

 

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Romualdo de Souza, funcionário de uma empresa de transportes que prestava serviço para a TAM, alcançou a rua e foi um dos primeiros a encontrar os bombeiros, que chegaram ao local cerca de dez minutos depois da queda. Pediu a ajuda deles para socorrer os irmãos.

“Uma parede caiu em cima de mim. Mas só percebi o que estava acontecendo quando senti o sangue escorrer da minha cabeça. Olhei para o lado, vi que o Osvaldo estava debaixo de uma das colunas da parede. Ele parecia que estava desmaiado. Tive a esperança de que estivesse vivo. Mas ele já tinha morrido. Fomos resgatados pelos bombeiros, com a ajuda de pessoas que trabalhavam lá na hora.”

Paulo César de Souza, 49 anos, foi levado ao hospital São Paulo com cortes na cabeça e pescoço. Às 17 horas da quarta-feira 18, já liberado, ele se juntou ao irmão Romualdo para enterrar o corpo de Osvaldo.

Dentro do prédio da TAM Express o desespero aumentava. Após o choque, os barulhos se multiplicaram: a turbina do avião ainda girava, as paredes desmoronavam, vigas de concreto espatifavam-se no chão e pedaços de vidros voavam pelo ar. O elevador parou e as escadas foram obstruídas pelo entulho dos destroços. Houve quem ficasse paralisado por alguns instantes, mas o barulho da segunda, e maior explosão da aeronave, interrompeu qualquer torpor. Com a força da pressão, mesas, cadeiras, armários, caixas – e pessoas – foram arremessados uns contra os outros. Outras explosões se sucederam. A atmosfera ficou impregnada do cheiro de fumaça e gasolina. O prédio ardeu.

 

 

 

 

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O INCÊNDIO
“O ar queimava a pele. A fumaça escura sufocava e impedia a gente de localizar as pessoas. Todo mundo corria em direção às saídas, gritando, chorando e chamando pelos colegas. Vi um amigo preso a um pedaço de concreto. Com ajuda de colegas, o tiramos de lá. Saí pelo estacionamento e fiquei na rua gritando por socorro. Nesse momento me lembrei da minha mãe. Pedi o celular de uma pessoa que passava e liguei para ela. Choramos muito.”

Roberto, 25 anos, auxiliar de cargas, voltou no dia seguinte ao local onde trabalhava havia menos de um ano. Queria ver ao vivo para tentar entender o que tinha acontecido. Ainda não havia encontrado o colega que ajudou a salvar.

“Gritava, pedia para as pessoas correrem, mas não conseguia me mexer. Ouvia as pessoas gritando o meu nome. O calor era insuportável. Me lembrei que alguém havia entrado no elevador segundos antes. Não havia dado tempo para a pessoa descer. Pensava tudo isso sem sair do lugar. Alguém me puxou e me arrastou para fora. Não lembro quem foi, mas me salvou.”

Como funcionário do setor de carga, Roberto, 40 anos, teve a sorte de estar a poucos metros da avenida, uma rota de fuga facilitada pela garagem onde entravam os caminhões. No segundo e terceiro andares, contudo, a situação era muito mais agoniante. Sem elevador ou escada para escapar, os funcionários jogavam cadeiras para tentar quebrar o vidro das janelas. Em algumas, as esquadrias queimavam a mão. Outras estavam emperradas pela grossa camada de poeira dos detritos.

“Eu e meu colega Paulo Zani abaixamos para respirar, demos as mãos um para o outro e seguimos sem saber direito para onde estávamos indo, até chegar à janela. Os bombeiros nos tranquilizaram, nos instruíram a tirar a camisa e enrolar o rosto para filtrar a fumaça. Às vezes perdíamos a escada Magirus de vista e ficávamos mais angustiados, imaginando que eles estavam ocupados com resgates em outro ponto do prédio. Paulo falou em se jogar. Eu disse: ‘Agüenta mais um pouco, agüenta’. Naquele instante, olhei para o céu, da janela, e vi que a vida estava chegando no limite. Eu só queria um pouco de ar. Mais um pouco naquela temperatura e nós não teríamos sobrevivido.”

Wanderley da Silva, 33 anos, trabalha em uma empresa de tecnologia que presta serviço à TAM Express. Estava no terceiro andar, junto com oito colegas. Ficou intoxicado pela fumaça e teve queimaduras nos braços e pernas. Está em recuperação.

 

 

 

 

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Acuada pelo fogo, a funcionária Michele Dias Miranda irrompeu pela janela do Setor de Tráfego, no segundo andar, e alcançou o parapeito localizado sobre a garagem. Ela e um colega percorreram a extensão de concreto para escapar das chamas. A multidão que a essa altura se aglomerava nos arredores ouvia seu choro angustiado. Em meio a apelos coletivos para que ela esperasse a chegada dos bombeiros, Michele caiu. Havia começado na empresa sete anos antes, como estagiária. Aos 24, foi a primeira vítima da maior da tragédia da aviação brasileira a ser sepultada.

O FURACÃO
“A cena que eu vi foi ainda mais impressionante e não vou esquecer jamais. Vi uma pessoa sendo sugada pela turbina.”

O depoimento do funcionário que trabalha na setor de segurança da empresa, e que não aceitou se identificar, permite apenas a triste constatação de que, ao final do resgate, as forças humanas que produziram a tragédia de Congonhas terão superado a natureza e feito além de uma pessoa, um pouco da inocência de cada sobrevivente, desaparecer em meio a um furacão.