Joaquim Maria Machado de Assis nasceu paupérrimo no cortiço número 77 do Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de lavadeira e de pintor de parede. Mulato e epiléptico. Vendeu bala nas esquinas quando criança, pouco foi à escola, levava um sanduíche no bolso do paletó quando arrumou emprego numa tipografia porque não tinha dinheiro para o almoço. Era reservado no temperamento, rígido na moral, caráter sem autoindulgência. Talvez por tudo isso (ou também por tudo isso), Machado de Assis, que se tornou um dos principais escritores brasileiros (senão o maior deles), fez-se um profundo conhecedor da personalidade humana, comparado nesse patamar, por críticos britânicos e americanos, ao russo Fiódor Dostoievski (universal em “Crime e Castigo”).

Um dos melhores exemplos dessa característica de Machado está na construção de sua personagem Capitu, protagonista de “Dom Casmurro”. Ele nos lança a dúvida: ela traiu ou não traiu Bentinho com o amigo Escobar? Os realistas acham que sim, os muito românticos acham que não. Na verdade, o que importa, e dá o toque de genialidade no autor, é sua surpreendente reflexão: dentro da Capitu criança, irrequieta, determinada, pobre e moradora em Mata-cavalos, já estava a Capitu adulta e adúltera da sofisticada Praia da Glória. Portanto, ela nunca traiu ninguém, não traiu Bentinho nem a si mesma, Capitu sempre foi o que foi.

Ele também sempre foi o que foi, é o que é: Lula. Dentro do Lula das greves metalúrgicas e do assembleísmo, na cidade paulista de São Bernardo, já se avivava o Lula populista e patrimonialista do estamento governamental burocrático do Planalto Central. De volta aos muito românticos, há quem tenha considerado que a região de São Bernardo repetiria a história (e não como farsa, segundo o anacrônico e inconsistente Karl Marx) da Alemanha do Vale do Ruhr ou da Itália da vermelha Bologna. Os realistas sabiam que não.

O PT, partido de Lula, teve, em sua fundação, um dos pés fincados na Igreja Católica (teologia da libertação), foi idealizado em sacristias. O outro pé estava no sindicalismo e em algumas siglas radicais que já haviam integrado a luta armada (ALN, Molipo, VAR-Palmares, por exemplo, estavam presentes). Há gente que agora se sente traída, com atraso de décadas, mas na verdade o “gene da traição” está lá no passado. O Lula dos contêineres supostamente pagos pela OAS, do tríplex dado e reformado eventualmente por essa empresa depois da quebra da Bancoop, da sala-cofre gratuita no Banco do Brasil, o Lula intolerante com a crítica e com a frustração, o Lula autocrático que desrespeita com palavras o Poder Judiciário, o Lula da mais rasteira barganha política para tentar barrar o impeachment, o Lula que a cada discurso populista ofende a racionalidade – todos esses Lula já habitavam o Lula das assembleias metalúrgicas no estádio da Vila Euclides.

O que existe de mais perigoso no PT é a aparelhagem burocrática stalinista a esconder eventuais desvios de conduta, é a paixão pelo modelo estrutural autocrático. Por isso Lula combina com o PT e vice-versa. O estadista Winston Churchill declarou certa vez que “algumas pessoas mudam de partido em defesa de seus princípios, outras mudam de princípios em defesa de seu partido”. Lula nunca precisou fazer uma coisa nem outra, ele e o PT se calçam feito luva. Sempre houve na nossa vida republicana um filho de Capitu a lembrar Escobar, a dar a pista de que algo está errado na história. Lula pode ser esse filho para o PT, o PT pode ser esse filho para Lula. Tanto faz, Lula e PT se merecem. Eles embarcaram o Brasil em um trem fantasma. É uma curva mal assombrada a cada dia.