Da varanda do seu apartamento, no quinto andar, de frente para o Malecón, o calçadão de oito quilômetros que serpenteia a orla de Havana, a advogada Ana Aléjo, de 74 anos, diz que sua vida virou um inferno nos últimos vinte dias. Foi uma revolução. Muito antes do surgimento do Airbnb no mundo capitalista, ela já alugava dois aposentos da casa que divide com o marido Guillermo, para turistas. Na histórica semana que começou com a visita de Barack Obama e terminou com o show gratuito dos Rolling Stones, o telefone de Ana não parou de tocar.

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CUBA LIBRE
Na véspera do show dos Stones, turistas movimentam o negócio
dos motoristas de carros antigos em Havana Vieja

Com a cidade lotada, estrangeiros sem teto apareciam na sua porta de mala e cuia, implorando por um lugar. “Eles diziam: ‘Eu pago 40, 50, até 60 CUC (uma das duas moedas locais), mas eu não tinha como alojar mais ninguém”, diz Ana, que cobra o equivalente a 35 dólares americanos por noite, com café da manhã incluído (um CUC equivale em média a 1 dólar americano). O aluguel dos quartos garante o sustento do casal de aposentados. Bons de conversa, Ana e Guillermo gostam de receber, sabem que as coisas estão mudando, mas só não engoliram ainda uma visita ilustre em Havana: a do presidente dos Estados Unidos. “São 50 anos de bloqueio, ameaças, retaliações e violência. Não podemos confiar de um dia para o outro”, diz Ana. “O sangue derramado não se esquece com palavras bonitas”. Não é fácil ser cubano, ter vivido a descida dos barbudos de Sierra Maestra, ter acompanhado a queda do Muro de Berlim e, ainda assim, achar que a visita de um presidente americano – mas é o Obama! – lhes desça com naturalidade.

A legítima e orgulhosa desconfiança foi quase apagada pela genuína alegria dos turistas americanos, e dos quatro cantos do mundo, com cabelos ao vento, desfilando a bordo dos conversíveis antigos em tons pastel. Eram ares de liberdade na ilha dos irmãos Castro. Em Havana Vieja, motoristas de “Bicitáxis” circulavam tranquilamente com bandeiras dos Estados Unidos, uma cena improvável. “Conheço gente que, no passado recente, foi presa apenas por portar dólares americanos”, conta Elier Benet, motorista da Embaixada brasileira em Cuba, impecavelmente vestido com uma Guayabera, a famosa camisa de linho branco com quatro bolsos. Aos 47 anos, ele nunca saiu da ilha. “Raul Castro já mudou muita coisa. Agora, com a vinda de Obama, esperamos que melhore ainda mais, principalmente a economia.”

O Embaixador do Brasil em Havana, Cesário Melantonio, também reconhece os avanços e aposta que o fim do embargo é questão de tempo: “Obama teve a grandeza de reconhecer que a antiga hostilidade não faz mais sentido”.

Com a abertura entre os dois países, celebrada em outubro de 2014, os vôos charters entre Cuba e Estados Unidos foram liberados, mas, a partir de setembro, um novo acordo de transporte aéreo vai formalizar a operação de cias aéreas americanas. Serão vinte aviões por dia pousando em Havana, além de mais 10 para outras cidades.

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VIVA LA REVOLUCION
Cubanos levaram bandeiras e chegaram a fazer coro com a frase
emblemática. Mas o clima foi de Woodstok, sem drogas e bebidas

Se há alguém que pode comemorar desde já esse céu de brigadeiro é Carlos Cristobal Valdes. Seu “Paladar”- como são chamados os restaurantes dentro de casas particulares – tem reservas pelos próximos doze meses. A fama do lugar explodiu depois que Obama apareceu para jantar lá com a família e parte de sua comitiva, no domingo, 20 de março. Cristobal foi avisado apenas meia hora antes e foi uma correria. Os Obamas foram acomodados em uma sala reservada, decorada com peças antigas e imagens de santos. Obama quis saber mais sobre a culinária cubana e a conversa com o dono da casa teve Sasha, a filha mais velha do presidente, como intérprete do espanhol. “Ele comeu filé, legumes e quis experimentar banana frita”, conta o chef. O prato, no cardápio com o nome de “Solomillo a la Plancha”, custa 14 CUC. E quem pagou a conta? Ele mesmo, em dinheiro local (em Cuba, cartões de credito com bandeira americana não são aceitos). “Você deixou o presidente dos Estados Unidos pagar a conta em seu restaurante?”, IstoÉ pergunta. “Claro que sim”, disse Cristoval. “Não fui eu que convidei”.

SATISFACCiÓN
Sem convite, sem ingresso, sem chiqueirinho vip. O show dos Rolling Stones em Havana foi o que nome dizia: “o concerto da amizade”. Bandeiras de Cuba disputavam em número com as argentinas, país de Che Guevara, um líder político e revolucionário para os cubanos, um personagem pop para o resto do mundo. Havia também as da Inglaterra, Grécia e, lógico, do Brasil. Antes do show começar, Lucas Jagger, filho do cantor com a apresentadora Luciana Gimenez, surgiu num canto do palco e ficou quinze minutos fotografando a multidão que já se apertava no campo de terra da Ciudad Deportiva, o complexo esportivo cercado de casebres.

Desacostumados a espetáculos daquela magnitude, os cubanos pareciam observar como se comportavam seus hermanos. Mas, sem saber cantar muitas músicas, fizeram o que sabem fazer de melhor: dançar. “Esperei 55 anos por isso”, dizia Aurelio Borges, ex-caminhoneiro, camiseta da banda e um bigodón, sacudindo o corpo freneticamente ao lado da filha, enrolada na bandeira cubana. “Sabemos que há alguns anos era muito difícil ouvir nossa música em Cuba. Mas aqui estamos. Penso que finalmente os tempos estão mudando”, disse Mick Jagger. Minutos depois um pequeno grupo entoou um coro “Viva la Revolución”. O show chegava ao clímax.

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Sem bebidas alcoólicas, sem drogas, sem confusão, o concerto da banda dos antigos “agentes do capitalismo” terminou na mais santa paz no território dos revolucionários. Na saída, a multidão caminhava lentamente como uma romaria pela pista de terra. E como uma torcida de um time de futebol, começou a cantar baixinho: “Cubaaaa, Cubaaaa”.

A ARTE SALVA
Do lado de fora, o prédio onde mora a artista plástica Mabel Poblet, 30 anos, lembra as construções de antigos conjuntos do BNH. Mas, por dentro, seu universo particular habita um moderno apartamento, retrato de sua arte contemporânea. Mabel vê a vida melhor no futuro de Cuba. Além das questões econômicas, o embargo atrapalha a produção dos artistas que sentem falta de materiais na ilha. “Por outro lado é bom porque nos estimula a sempre criar algo novo”, diz. Mabel foi ver os Stones com amigos e se emocionou. “ Acho que essa abertura vai provocar algo bom para a arte. Fico feliz que essas mudanças aconteçam nessa etapa da minha vida.”

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Para o jornalista cubano Ciro Bianchi, a histórica semana foi um marco simbólico dessa intenção de mudanças. A visita de Obama significa o fim da Guerra Fria e o concerto dos Stones um sopro de liberdade, mas há questões urgentes e fundamentais como o fim do bloqueio econômico pelos Estados UNidos e a devolução de Guantánamo. “Sem isso não há como resolver os problemas”. Mas os sinais de mudança estão espalhados em cada esquina, sobretudo na ausência do medo. “Fidel é bom, mas a revolução já faz muito tempo”, disse um motorista de um triciclo com a bandeirinha americana. “Com dinheiro, em Cuba se vive muito bem.”

Antes que o tempo e as limitações do controle estatal possam fazer a população esquecer esses dias, em que dançou ao som dos Stones e viu pela primeira vez Raul Castro e Barack Obama assistirem juntos a um jogo de beisebol, Cuba vai entender de uma vez por todas porque está na moda. No início de maio, Karl Lagerfeld e sua trupe desembarcam por lá, para o primeiro desfile da Chanel na ilha dos irmãos Castro. “O mundo está cercado de capitalismo por todos os lados. Não podemos levar nossa ilha para outro planeta, então temos que conviver com essas regras”, resigna-se Guilhermo Gómez, ex revisor do jornal Prensa Latina. E os Rolling Stones, o senhor viu?- “Não, prefiro os Beatles.” 

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