Ouça o depoimento do repórter Claudio Dantas Sequeira, da IstoÉ, enviado especial ao Haiti
 

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LEI DO MAIS FORTE
Haitianos disputam comida distribuída por fuzileiros navais americanos

O desafio da reconstrução do Haiti aumentou às 6h03 da quarta-feira 20, quando a terra voltou a tremer no já miserável país. De imediato, a mais forte réplica do terremoto que arrasou o território caribenho espalhou o pânico entre a população. Surpreendidos pela ameaça de uma tragédia sem fim, militares e integrantes de agências humanitárias também tremeram. Foram apenas cinco segundos, o suficiente para derrubar estruturas frágeis que ainda se mantinham de pé, aprofundar fendas abertas nas ruas e soterrar a esperança de resgate de sobreviventes. “Se uma pessoa ficou presa num local com ventilação, um segundo terremoto ou até pequenos tremores secundários podem fazer a estrutura ceder, esmagando-a”, diz o tenente-coronel brasileiro Ricardo Alvarenga, chefe da equipe do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal. Refletido como terror no rosto de haitianos que correram em meio à poeira, o novo terremoto potencializou as dificuldades para reerguer o país sem governo.

O colapso institucional já havia sido evidenciado na véspera, quando 19 helicópteros Black Hawk aterrissaram no gramado do palácio presidencial em ruínas, desembarcando soldados americanos. Carregada de simbolismo, a cena lembrou a ocupação americana do Haiti entre 1915 e 1934.

Multiplicando o potencial destrutivo da sucessão de tremores que abalam o Haiti, instalou-se no país um clima tenso entre os envolvidos no socorro às vítimas. Comandante militar da missão da ONU no país, o Brasil intensificou sua ação na segurança pública e na assistência aos desabrigados. Ao mesmo tempo, tratou de lembrar que seus militares sempre souberam conviver com harmonia com os haitianos. “O soldado brasileiro nunca foi confundido com invasores estrangeiros. Muito pelo contrário: foi a sua mão amiga que criou a confiança mútua entre a Força de Paz das Nações Unidas e os justos anseios da sociedade haitiana”, afirmou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em comovente cerimônia fúnebre em Brasília. Atendendo a apelo da ONU, o Brasil reforçará seu contingente no país. Atualmente com nove mil efetivos, as forças de paz da organização devem aumentar para 12,5 mil homens nos próximos dias.

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DESESPERO
A ajuda chega em conta-gotas

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Parece pouco diante da reação rápida e massiva dos Estados Unidos. Logo depois do primeiro e devastador terremoto, eles desembarcaram 12 mil homens no Haiti. Até este domingo 24, serão 20 mil. Junto com eles, porém, desembarcou um modelo de ação mais recomendado a um cenário de guerra do que a uma missão de paz. Assim que chegaram, os americanos assumiram o aeroporto da capital Porto Príncipe. Lá, instalaram um sistema de controle próprio e passaram a definir quem pousa ou levanta voo. Na terça-feira 19, ocupavam sete das 11 posições de parada da pista. Ao mesmo tempo, lançavam de aviões cargueiro caixas com víveres, estimulando em terra a lei do mais forte. Na prática, as cenas de desespero na disputa pelos produtos não diferiam em nada das observadas durante os saques ao comércio local. O primeiro a se insurgir contra o estilo americano foi o ministro francês da Cooperação, Alain Joyandret: “Precisamos ajudar o Haiti, não ocupá-lo.” Antes que a tensão se tornasse insustentável, o presidente haitiano, René Preval, que despacha de uma delegacia de polícia, defendeu a atuação vinda do Norte: “Não temos nenhum problema ideológico para receber a ajuda dos que podem e querem nos ajudar.”

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OCUPAÇÃO
Americanos desembarcam no Palácio do Governo em ruínas

À frente das ações de ajuda humanitária, os Estados Unidos levaram para o Haiti um hospital flutuante com mil leitos, além de um porta-aviões. Desencadearam até uma campanha para desestimular haitianos a deixar o país rumo à Costa Leste americana. Mas, embora representem a terra da opulência para flagelados em fuga, devem limitar seu papel à ajuda humanitária emergencial. “É o Brasil que pode liderar a reconstrução”, afirma o cientista político americano Riordan Roett, da Universidade Johns Hopkins. “Os Estados Unidos não poderiam, tanto por sua história em relação ao Haiti quanto pelo sentimento antiamericano.” A tradicional revista inglesa “The Economist” chega a sugerir que o comando das operações do país seja realizado pelo presidente Lula quando ele deixar o Planalto, em janeiro de 2011.

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SOCORRO
Hospital de campo na base militar do Brasil em Porto Príncipe

Preocupado em manter a liderança na reconstrução do Haiti, o governo brasileiro já começou a articular nos bastidores uma estratégia que envolve medidas de impacto. Entre elas está a de reerguer o Palácio do Governo, para que o presidente Preval reassuma a posição de liderança política. Além da inegável solidariedade com o povo haitiano, há o interesse em fortalecer o papel de líder regional e a campanha para conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. “Participar da reconstrução de um país é crucial na geopolítica”, diz Heni Ozi Cukier, professor de relações internacionais da ESPM, em São Paulo, que já trabalhou junto ao Conselho de Segurança, em Nova York. “Além disso, eleva o moral das tropas. E nenhum país se torna uma grande potência sem um pilar militar forte.”
Para reconstruir as instituições haitianas, a missão da ONU terá que receber novas atribuições que não a de estabilização. Na organização, há quem defenda a tese de que a missão deve assumir um papel executivo, substituindo o governo haitiano. A ideia conta no Brasil com apoio de alguns setores militares, mas na diplomacia a hipótese é impensável. O maior temor do governo é que, passado o primeiro momento, a comunidade internacional dê as costas para o Haiti e a ajuda financeira prometida não chegue. Isso deixaria nas mãos do Brasil um problema ainda maior do que o assumido em 2004, quando desembarcou no país caribenho.

“Querem que a ONU assuma o governo”

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Edmond Mulet, novo representante da ONU para o Haiti, falou à ISTOÉ na terça-feira 19

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ISTOÉ – É possível reconstruir o Haiti?
Edmond Mulet – O que tentamos agora é reconstruir a missão para cumprir seu mandato.

ISTOÉ – Será necessário uma mudança no mandato da ONU?
Mulet – Estarei de acordo com a reforma do mandato para que governos da região se façam mais presentes. Mas não acho que a ONU deva ter um mandato executivo no país. Querem que a ONU assuma o governo. Isso eu não concordo.


ISTOÉ – Qual o risco de que as promessas de recursos financeiros ao Haiti caiam de novo no vazio?
Mulet – Fizemos todos os esforços para manter o Haiti no radar da opinião pública. Pelo que vi e senti, esse compromisso vai se materializar.

ISTOÉ – Qual o papel do Brasil nessa missão?
Mulet – Foi o primeiro país a responder. E os brasileiros não morreram em vão.


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