Com dois filmes prontos, o cineasta americanorevela que é bem diferente dos personagens quecria ou interpreta

Woody Allen odeia dar entrevistas. Mas é um tagarela quando se reúne com amigos. A melhor e uma das únicas maneiras de entrevistá-lo é convencer um conhecido comum a te incluir na lista de convidados para um jantar íntimo com a presença do cineasta . Uma dessas ocasiões aconteceu na semana passada, num apartamento do Upper West Side de Manhattan – hábitat do cineasta e várias vezes cenário de seus filmes. Em volta da mesa estavam seis pessoas, e sobre ela generosas porções de espaguete à primavera e talharim à marinara, salada verde e dois bons tipos de Chianti – estes intocados por entrevistado e entrevistador. A esposa, Soon-Yi, não compareceu e ficou claro que ela e os quatro filhos – adotados ou não – eram assuntos-tabu. O combinado era uma conversa sem gravadores rodando – “Não é uma entrevista: será um papo”, determinou Allen. Permitiu, porém, a penosa cópia da conversa à custa de papel e caneta.

Aos 69 anos – virará setentão no dia 1º de dezembro –, Woody Allen aparenta fisicamente a idade que tem. Mas sua mente dá seguidas mostras de ter, no mínimo, quatro décadas a menos. O vigor intelectual e a erudição deste que é um dos maiores cineastas americanos de todos os tempos são palpitantes, mas sem deixar transparecer grandezas do ego. Simpático, falando num ritmo menos acelerado do que aquele usado pelos personagens que cria e interpreta, Allen se prestou a um diálogo do qual participaram todos os comensais. O que se tem a seguir são trechos pinçados dessa conversa cujo assunto principal foi seu filme Melinda and Melinda, que está para estrear nos Estados Unidos, no qual a atriz Radha Mitchell interpreta a protagonista. A personagem, aliás, é uma penetra de jantares-festas, do mesmo modo que o representante de ISTOÉ, neste caso.

ISTOÉ – O sr. mudou recentemente de estúdio. Saiu do DreamWorks e foi para o Fox Searchlight. Por quê?
Woody Allen

Não tive problemas com o DreamWorks. Foi muito bom trabalhar com eles, que aliás apenas distribuíam meus filmes. O Fox também é muito bom parceiro. Para mim, na verdade, tanto faz o estúdio: não há diferença entre os acordos que fiz com ambos. Ninguém lê meus roteiros. É tudo na base do pega ou larga: ou o estúdio quer ou não quer. Meus filmes não custam muito, então eles não arriscam somas enormes comigo. Em compensação, eles não dão palpites sobre casting ou qualquer outro aspecto.

ISTOÉ – Suas produções são mesmo muito econômicas. Enquanto diretores pouco conhecidos embolsam dezenas de milhões de dólares, o sr., que é um veterano, conta tostões. O sr. não gosta de trabalhar com grandes orçamentos?
Woody Allen

Se eu não gostaria de trabalhar com grandes orçamentos? Eu sonho todas as noites com orçamentos luxuriantes. Sonho que tenho US$ 100 milhões, ou mesmo US$ 50 milhões. Faço até por US$ 45 milhões. Todo mundo faz filmes com US$ 100 milhões, e eu fazendo filmes de US$ 15 milhões…

ISTOÉ – Suas produções saem por apenas US$ 15 milhões ou o sr. está exagerando para baixo?
Woody Allen

Todas as minhas produções custam no máximo US$ 15 milhões. É dureza, tem uma porção de coisas que eu gostaria de fazer em meus filmes e não consigo. Pegue o exemplo de Match point, que está pronto, mas ainda não tem data certa de lançamento. Chegou um momento em que os contadores me disseram que não haveria verba para pagar pela música. Um filme todo sem música. Descobri, então, que se eu usasse ópera poderia musicar. Aí convenci uma companhia de ópera a fazer a parte musical. Este é só um exemplo. Existem inúmeras coisas que eu gostaria e não posso. Não posso ter efeitos especiais. Meu Deus! Muitas vezes não consigo sequer refilmar uma cena. Caso uma boa alma me dê US$ 100 milhões para trabalhar, com certeza vou usar até o último centavo.

ISTOÉ – Essa é a razão de o sr. filmar apenas em Nova York?
Woody Allen

É uma das razões. Claro que Nova York, especialmente Manhattan, é o local que eu conheço mais e minhas obras estão dentro desse ambiente. Eu até que gostaria de filmar em Paris, por exemplo. Acho Paris uma fabulosa cidade e acredito que conseguiria ambientar uma história por lá. Só que não há dinheiro, e eu também me sinto mais confortável no meu território. Mas não é verdade que eu não filmo em outras locações. Por exemplo: Match point – que está em fase de pós-produção – foi rodado em Londres. O filme é com Scarlett Johansson, que é uma atriz maravilhosa e brilhante, e Jonathan Rhys-Myers, que também é fantástico. A fotografia ficou linda, pois filmei durante o verão londrino. Estava frio e cinzento, o que sempre fica melhor na fotografia. Além disso, em Londres não tem essa história de sindicatos como aqui nos Estados Unidos, onde há uma hiperespecificação de funções. Aqui, a pessoa que carrega um fio de eletricidade não pode ligar a tomada. Só o carregador de fios pode carregar fios e só o cara que liga tomadas pode ligar tomadas. É loucura. Tem de ter uma licença especial em limpeza só para carregar uma vassoura na locação. Lá em Londres, todo mundo se ajuda sem infringir regras sindicais. Isso é bom não apenas pelo aspecto financeiro, evitando a contratação de uma multidão de especialistas. É bom também pelo clima de camaradagem. É como fazer um filme na escola de cinema: o cara que serve o almoço também ajuda a parar o tráfego.

ISTOÉ – Do que trata e quando estréia Match point?
Woody Allen

Não quero adiantar nada sobre a história, pois ainda tenho de fazer mudanças. O filme estará em Cannes e provavelmente entrará em cartaz no final do ano.

ISTOÉ – Apesar da falta de recursos, o sr. sempre consegue grandes nomes ? Julia Roberts, Helen Hunt, Sean Penn, só para citar alguns ? para atuar em seus filmes. Como se explica isso?
Woody Allen

Sempre procuro o ator que me parece melhor para o papel. Aí descubro que não tenho dinheiro para pagar o salário daquela pessoa. Acontece que algumas vezes você consegue pegar um ator que não liga para o cachê disponível e sai correndo para fazer o trabalho. Mas, na maioria das vezes, os atores só trabalham comigo quando estão parados entre duas produções. Eu chamo um ator, aí em seguida ele recebe um convite do (Steven) Spielberg – que, aliás, é um excelente diretor – e me larga na hora. Não dá para competir com o dinheiro que o Spielberg ou o Oliver Stone oferecem. Mas se o ator acabou de filmar, faturou milhões de cachê e não tem mais nada para fazer, ele aceita meu convite. Por isso, muitas vezes filmo quando sei que há uma estiagem na indústria.

ISTOÉ – O sr. está lançando agora o filme Melinda and Melinda. Trata-se de um drama e uma comédia, com roteiro dividido em duas histórias. Por que o sr. optou por esta solução?
Woody Allen

É claro que eu faço mais comédias do que dramas. Minha filmografia deixa isso óbvio. Mas é sempre divertido fazer algo mais pesado, um drama, por exemplo, só para variar. Muitas vezes tenho idéias que tanto podem ser escritas de modo cômico quanto seriamente, de modo dramático. Eu sempre escolhi uma das vias e segui aquela opção. Melinda and Melinda era uma dessas idéias que poderiam ir tanto para um lado quando para o outro. Tanto poderia ser engraçada quanto trágico-romântica. Aí me ocorreu: por que não alterar as duas vias e ver se eu consigo fazer um filme desse modo? Pensei que também poderia aprendar algo nesse processo. É claro que não aprendi coisa alguma, mas foi divertido fazer esse trabalho. No caso de Melinda and Melinda, comecei com um drama. Aí entrou no elenco o Will Ferrell. Então voltei para o roteiro e trabalhei para fazer algo sob medida para o Will e acabei fazendo uma comédia.

ISTOÉ – No Brasil as pessoas não conhecem o Will Ferrell (do programa Saturday night live e dos filmes Um duende em Nova York e Dias incríveis) do mesmo modo que os americanos. Por favor, explique como se faz algo sob medida para ele.
Woody Allen

Bem, em primeiro lugar, ele é fisicamente diferente. É um grandalhão simplório. O jeito como ele se movimenta, sua fisionomia e expressão têm algo de intangível, de ridículo e doce. Todo mundo ri de suas comédias ridículas – inclusive eu mesmo. A grande pergunta era: mas será que ele consegue interpretar outros papéis de forma convincente? Acontece que há algo de muito doce nele que ganha seu coração. Ele é vulnerável, talvez por seu tamanho e falta de jeito, pelas suas expressões ou por algum talento inato dentro dele, sei lá… Teve algumas coisas no roteiro – alguns diálogos – que ele não conseguia fazer. Quando eu escrevo um diálogo, minha tendência é fazer algo para mim, mesmo que eu saiba que não vou ser eu quem vai dizer aquelas frases. Mas eu escrevo instintivamente para mim mesmo e tive de cortar alguns diálogos ou frases porque Will não conseguia fazê-los direito. Não era ele. Não era engraçado quando ele falava. Em outros momentos, teve coisas que ele fez que eu nunca imaginei ao escrever. Antes de encontrá-lo pessoalmente, não imaginei aquelas situações. Ele contribuiu no roteiro de tal modo que acabou construindo um personagem ridículo, engraçado, especial.

ISTOÉ – Publicaram uma foto de vocês dois, entre as filmagens, e a legenda dizia: ?Allen ensinando Ferrell a ser Allen.? Mas, pelo que o sr. diz, ele não é o sr. em Melinda and Melinda, correto?
Woody Allen

É claro que o personagem tem sempre muito de mim. Afinal, escrevi pensando – como sempre – em mim mesmo. Mas há diferenças entre o personagem e eu. Por exemplo, cortei muitas piadas curtas no meio de frases. Se eu disser a frase, ela fica engraçada. Se ele falar, não tem graça: soa mais como um diálogo do que como uma piada. Aquilo que é natural para mim, não é para ele. Não é a primeira vez que isso acontece. Com a Diane Keaton era o mesmo problema. Ela também não conseguia dizer aquelas piadas curtas, do mesmo modo que o Will não conseguiu. Eu costumava escrever para ela essas tiradas rápidas e cortantes, mas ela era incapaz de dizê-las de modo engraçado. Diane é a pessoa mais engraçada que eu conheci na vida, e costumava sempre roubar a cena. Roubava o filme todo. Sempre escrevi filmes para mim, como personagem principal. Ela era personagem secundária, mas mesmo assim roubava as cenas.

ISTOÉ – Manhattan tem uma grande população negra. No entanto, seus filmes raramente costumam mostrar negros na cidade. Em Melinda and Melinda o sr. escalou os atores negros Chiwetel Ejiofor (Coisas belas e sujas e Elas me odeiam mas me querem) e Daniel Sunjata (Má companhia e Anjo de vidro). O sr. sucumbiu ao multiculturalismo?
Woody Allen

Sou judeu, fui criado num ambiente judaico. Esse é meu idioma. Acho que nunca conseguiria escrever de forma convincente sobre uma família negra. Tive essa conversa diversas vezes com o (cineasta negro) Spike Lee. Duvido também que ele consiga escrever de forma convincente sobre uma família judia. Eu vi Ejiofor em Coisas sujas e belas e o achei superatraente. É um grande ator e muito carismático. Achei que era a pessoa que eu procurava para o papel. Ele leu o roteiro que mandei e aceitou fazer. Já Sunjata, que faz o personagem na parte cômica, vem dos teatros da Broadway. Eu o vi na peça Take me out e gostei muito. Qualquer um dos dois, tanto Chiwetel Ejiofor quanto Daniel Sunjata, poderia fazer a parte do outro – ou seja: poderiam trocar de lugar no filme. Eu queria alguém que realmente pudesse conquistar as duas mulheres e também fosse uma ameaça ao personagem de Will Ferrel. Aqui não me importava a cor dos atores. Imaginei uma festa na qual há um pianista e ele é talentoso e atraente. Como decidi que o Ejiofor seria esse pianista, a outra história deveria ter também um negro pianista.

ISTOÉ – Como é seu sistema de trabalho num texto? Como é que o sr. escreve?
Woody Allen

Escrevo naqueles blocões de papel amarelo, a lápis ou à caneta. Escrevo deitado na minha cama. Acabo sempre tendo de copiar tudo à máquina depois e isso toma uns três dias. Eu provavelmente deveria escrever sempre à máquina,
pois nesse caso você trabalha a cena ou ato e depois passa para o papel já sabendo como é que vai funcionar. Ao escrever à mão, você, na verdade, está ouvindo a cena em sua cabeça e não sabe se a coisa vai funcionar direito quando
se tornar audível a todos. Mas escrever à mão para mim é muito mais rápido.
Acabei me viciando nesse processo.

ISTOÉ – O sr. criou um personagem ? o judeu intelectual, neurótico e engraçado. O público acabou acreditando que todo nova-iorquino judeu é um Woody Allen. E os judeus da cidade também tentam incorporar essa persona e imitar o sr. O que acha de ter povoado uma metrópole com milhares de Woody Allens?
Woody Allen

Um horror! Mesmo porque eu não sou aquele personagem. Caso queiram meu conselho: não tentem ser Woody Allen. Acho muito difícil ser eu.