A PAIXÃO DE JL/ direção Carlos Nader, 82’, cor, 2015, em cartaz a partir de 25/2 no circuito Espaço Itaú de Cinema de São Paulo, Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador

Falando baixinho, quase em sussurro, José Leonilson descreve um sonho em que sente medo de uma pessoa “que vive livre e fora de casa”, e que usa de artifícios para seduzi-lo a sair. “Vou fechando fechadura por fechadura, os trincos, tudo. Fico horas fechando as fechaduras e as portas”. Em movimento contrário, o diretor Carlos Nader escolhe esta fala como chave de abertura do campo de visão da obra de Leonilson (Fortaleza, 1957- São Paulo, 1993), a partir do diário de seu diário gravado de 1990 até sua morte. Na fala de introdução de “A Paixão de JL” está revelada a estrutura que irá reger os 82 minutos do filme realizado pelo Itaú Cultural: os flertes entre ficção e realidade; as tensões entre mundo interior e mundo vasto; as intimidades entre a esferas pública e privada de uma vida.

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MEDO
Cena interpreta sonho em que Leonilson teme ser seduzido pelo mundo exterior

Desde que a morte pelo vírus HIV encerrou abrupta e violentamente uma trajetória de singular consistência e em franca projeção, o conjunto da obra de Leonilson foi identificado pela crítica como predominantemente autobiográfica. Cada uma de suas pinturas, desenhos e bordados seriam “cartas para um diário íntimo”, nas palavras de Lisette Lagnado, autora da primeira publicação monográfica, em 1996. 

Prêmio de melhor documentário no festival É Tudo Verdade, de 2015, “A Paixão de JL” vem agora alinhavar expressão oral e obra plástica na construção de um retrato da vida e da obra do artista. Estrutura semelhante já havia sido usada por Karen Harley no curta “Com o Oceano Inteiro Para Nadar” (1997), premiado no 13º Rio Cine Festival. Há inevitáveis cruzamentos entre os dois filmes, tanto nas escolhas de trechos de texto, quanto de obras. O bordado “José” (1991), por exemplo, é escolhido para abrir o filme de Harley e fechar o de Nader. 

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HOMEM-PEIXE
Leonilson acreditava em um oceano inteiro para nadar

Mas a estas duas instâncias autobiográficas da obra de Leonilson – texto e imagem –, o filme entrelaça um terceiro elemento: imagens de arquivo de acontecimentos públicos vividos ou citados pelo artista. A assimilação desses conteúdos é o que permite a Nader exercitar liberdades poéticas a partir de dados factuais, em consonância com o que entende da obra e do discurso de seu retratado, explicitando um caminho autoral.

Entre sonhos com cidades submersas entremeados a clipes de Madonna, cenas da guerra do Iraque e filmes de Wim Wenders, surgem elementos que não são explicitamente citados por Leonilson e que, portanto, reafirmam a mão do diretor. Um exemplo flagrante é a inserção, na primeira parte do filme, de dois grandes momentos do século 20 – mais precisamente de 1989 – que viraram imagens icônicas: o homem que desafiou os tanques do exército chinês e a celebração da queda do muro de Berlim. Dois casos de resistência e vitória da liberdade.

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VOZ
Vazio, confusão, isolamento e fragilidade são sentimentos gravados em fitas K7

O encadeamento entre voz, obra e imagens do mundo tece uma narrativa poética de grande interesse. Mas não são poucos o momentos em que texto e cadência da voz são tão pungentes, que não há imagem que dê conta e os olhos do espectador são impelidos a se fechar.

Foto: Eduardo brandão; Paula Alzugaray