Nos Estados Unidos, há anos briga-se a respeito do momento em que a vida começa. Grupos antiaborto acreditam que a fecundação do óvulo pelo espermatozóide é o princípio de
tudo. Já os defensores do direito das mulheres em terminar a própria gravidez alegam que a existência humana demora mais do que este período para se concretizar. E como se não bastasse este cabo de guerra filosófico, a polêmica agora também passa a envolver o preciso conceito da morte. A discussão ganhou força na semana passada a partir da nova exposição do caso da paciente americana Terri Schiavo, 41 anos, da Flórida. Em 1990, ela sofreu parada cardíaca, entrou em coma e foi diagnosticada com morte cerebral. Baseado neste veredicto, o marido, Michael Schiavo, deseja desconectar os equipamentos que a mantêm viva. Mas os pais de Terri contra-argumentam: “Morreu para você, esposo ingrato!” Arregimentaram advogados, grupos religiosos – que envolvem até o Vaticano – e políticos republicanos.

Até terça-feira 22, eles vinham conseguindo prolongar a permanência de Terri
neste mundo graças a uma longa briga jurídica. Na sexta-feira 18, os médicos desativaram o tubo que a alimentava depois que a Corte de Apelos do Estado
liberou o procedimento. Determinou-se inconstitucional a lei especial de
proteção a Terri, patrocinada pelo governador Jeb Bush e aprovada pelo Legislativo antes das eleições presidenciais. O caso parecia encerrado. Mas o Congresso americano criou outra medida que permitiu jogar o imbróglio para a instância federal. O presidente George Bush, inclusive, interrompeu seu retiro no Texas e voou para Washington com o único propósito de aprovar esta manobra. Na terça-feira 22, no entanto, o juiz federal James Whittemore confirmou a decisão de manter desligado o tubo que alimentava a paciente. Os advogados dos pais de Terri imediatamente passaram à próxima instância: a 11ª Corte Federal de Apelos, em Atlanta, considerada de tendências conservadoras. Até a noite do mesmo dia, porém, nenhuma decisão havia sido tomada. Teoricamente, Terri poderia sobreviver por duas semanas sem alimentação.

Independentemente de seu desfecho, o caso despertou muita polêmica em todo o mundo. A primeira se baseava na velha discussão sobre o direito de morrer. Outra, também importante, teve como ponto de partida a forma escolhida para fazer com que o organismo de Terri parasse: a morte por inanição, depois de longos dias sem nutrição ou hidratação. “Esse processo não causa grandes choques. Trata-se de uma morte gentil. Ela não sentirá dores”, afirmou a ISTOÉ Ronald Cranford, integrante de um grupo de médicos chamados pelo marido para avaliar o estado de Terri. A afirmação, porém, leva à legítima pergunta: como ele sabe disso? “Temos evidências seguras sobre este procedimento”, diz Cranford. Mas, na verdade, nenhum paciente em coma recebeu tal tratamento e voltou para dar certificado de “gentileza” à morte de fome e sede. “Como cidadã, sou a favor da retirada dos aparelhos de sustentação à vida de Terri. Mas, como médica, não posso afirmar que o procedimento não seja penoso. A realidade é que não temos certeza sobre o que o paciente sente”, disse Marilyn Hannover, especialista em ética médica do Memorial Hospital, em Nova York.

Alerta – O que se sabe: dores têm muito a ver com o lóbulo frontal. Estudos mostram que a dor provoca hiperatividade no córtex pré-frontal (a camada cerebral mais extrema situada antes do osso frontal). Inclusive, um dos métodos usados nos anos 40 para aliviar pacientes com dores crônicas era a leucotomia, cirurgia na qual o lóbulo frontal é desconectado do resto do cérebro. Basicamente é uma lobotomia menos invasiva. A lobotomia remove totalmente o lóbulo frontal, enquanto a leucotomia corta apenas as conexões entre estas áreas. Dias depois da operação, pacientes que estavam paralisados de dor voltam a agir como se estivessem curados. Quem inventou esta técnica foi o português Antonio Moniz, o que lhe valeu o Prêmio Nobel em 1949.

Descobriu-se depois, porém, que as pessoas não estavam recuperadas. O paciente que passou por uma leucotomia continuava sentindo dores, ainda que em menor intensidade. O que mudava era o “sentimento” da dor. Ou seja: ele não ligava mais para aquele sofrimento físico específico. “Terri Schiavo não mostra conexão entre o lóbulo frontal e o resto do cérebro. O que pode estar ocorrendo é algo similar ao experimentado por pacientes que passaram por uma leucotomia. Não é que não sinta dor – existe atividade em seu lóbulo frontal –, mas ela já não liga para a dor”, diz Victor Gambone, outro membro da equipe convocada por Schiavo para verificar o estado da esposa. “Gambone também testemunhou que ficou impressionado com o nível do estado de alerta de Terri”, contra-argumentou Robert Schindler, pai de Terri, a ISTOÉ. No que foi rebatido por Brian Schiavo, irmão de Michael. “Quem acha que ela responde a estímulos precisa ser examinado por um psiquiatra”, disse.

De todo modo, ninguém pode se arriscar a pontificar o que pensa, ou se pensa, um paciente nas condições de Terri. A ciência está longe de saber tudo sobre o cérebro. “Ainda estamos engatinhando nesta área”, diz o neurocientista John Byers, da Universidade de Idaho. É verdade. Na edição 1848 de ISTOÉ, o brasileiro Steven Rehen revelava aspectos insuspeitos das células cerebrais. Até as suas pesquisas, ninguém havia sequer contado as sequências de cromossomos dos neurônios. Robert Schindler e sua família acreditam que há esperanças de recuperação para Terri. “Quem poderá negar com certeza esta possibilidade?”, pergunta o advogado deles, David Gibbs.

Documento – Na verdade, existem dois aspectos importantes e separados neste caso. O primeiro diz respeito à medicina, e evoca, entre outras, a pergunta: o que é melhor para uma pessoa em estado vegetativo? O segundo é de ordem jurídica. Terri nunca assinou documento afirmando que não desejava ter a vida mantida por aparelhos. Ao mesmo tempo, seu marido, guardião legal da paciente, tem testemunhas de que ela deu instruções para não ser confinada indefinidamente ao estado de coma. Schiavo tem o direito de determinar o destino de sua esposa. Os Estados Unidos funcionam com um sistema político com três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – que não devem suplantar uns aos outros. Jeb Bush, o governador da Flórida, e a Câmara dos Representantes fizeram exatamente isso ao passar por cima da decisão proferida por um juiz que deu ganho de causa ao marido. A Corte Superior do Estado corrigiu esse erro. Os republicanos em Washington insistiram na manobra ao nível federal e receberam o apoio do presidente Bush. Fizeram pior: criaram uma lei especial para uma pessoa.
Caberá ao Judiciário novamente corrigir o abuso, sob o risco de, ao não se fazer isso, colocar esse Poder no mesmo ridículo a que foi exposto durante as recontagens de votos na Flórida, nas eleições de 2000.