Não é de hoje que a monogamia tem sido atacada por correntes de pensamento que buscam relativizar o conceito do amor romântico e suas implicações de exclusividade. Um dos movimentos mais recentes surgiu nos Estados Unidos, conta com organizações panfletárias na Alemanha e Inglaterra e ganha adeptos no Brasil: o poliamor. Seus praticantes consideram possível, natural e saudável alguém amar e ser amado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Ou seja, pode ter relação profunda com várias pessoas, sem crise existencial ou esconde-esconde. Mas projetar a idéia para o cotidiano é um exercício para lá de complicado e cheio de desafios.

Pode-se imaginar, por exemplo, um homem que odeia ópera casado com uma mulher aficionada pela arte. Se ela tiver um segundo parceiro, que a ama e gosta também de ópera, poderá levá-la ao teatro e o que poderia ser um problema estaria resolvido, pelo menos em parte. E o marido teria, em vez de ciúme, felicidade por saber que a pessoa que ama está alegre e sendo bem cuidada por alguém. É assim que pensam os “poliamoristas”. O exemplo foi dado pela psicanalista Regina Navarro Lins no capítulo extra que ela preparou para a reedição de seu livro A cama na varanda, pela editora Best Seller. “Tive de incluir o poliamor por causa de seu crescimento e da perspectiva de que ele substitua a monogamia romântica no futuro”, sustenta Regina, também autora da coleção Amores comparados.

O poliamor tem parentesco com alguns movimentos de libertação sexual, mas difere substancialmente da queima dos sutiãs, do amor livre, do casamento aberto e do swing porque o centro da questão passa a ser o amor, não o sexo. Um trecho do novo capítulo de Regina mostra que os poliamoristas têm ousadias teóricas capazes de deixar o movimento hippie no chinelo: “Eles acreditam que representam os verdadeiros valores familiares (…) Crianças que têm muitos pais/mães têm mais chances de serem bem cuidadas e menos risco de se sentirem abandonadas se alguém deixa a família.”

A estudante paulista Kelly Lima, 23 anos, não consegue se imaginar de volta aos tempos de amores impossíveis de Romeu e Julieta. Ela já teve três relacionamentos simultâneos. Amava e era amada pelos três. Dois deles têm outras relações. O terceiro era adepto da monogamia, mas respeitou sua opção durante quase um ano, até descobrir que não conseguiria manter o relacionamento poliamoroso. Kelly hoje tem um namorado “primário”, com quem está há oito anos, e um “secundário”. O “secundário” tem uma outra mulher, a “primária”, que é monogâmica, mas aceita dividi-lo com Kelly. Complicado? “O essencial é o amor, o resto é tudo discutível”, diz a jovem. E quem será o pai dos filhos, o primário ou o secundário? “Quando for a hora, vou escolher o parceiro mais adequado para ter a criança.”

As dúvidas são inúmeras – e certamente insolúveis – para o leigo que tenta compreender o poliamor raciocinando com os elementos do romantismo que pauta a sociedade. Para se opor ao ciúme, combustível mais inflamável das relações convencionais e que leva o marido a preferir mil vezes ir à ópera que odeia do que ver a mulher feliz com outro, os poliamoristas pregam a compersion – ainda sem tradução mas que pode ser entendida como comprazer. Ter compersion significa ficar alegre quando a pessoa que você ama é amada por mais alguém. Haja generosidade. E o medo óbvio de que, ao liberar o ser amado para amar e ser correspondido por outros, a pessoa aumente as possibilidades de perdê-lo? “Esse pavor de perder só é tão desesperador porque só se pode ter uma pessoa. O desejo de liberdade vai acabar vencendo o conflito com o desejo de simbiose. No futuro, os netos vão dizer: “Coitada da minha avó, só tinha um parceiro para fazer tudo, não podia ter tesão por mais ninguém.” Novos arranjos amorosos vão surgir, prevê Regina Navarro Lins.

Quem estiver pensando que o poliamor é delírio de meia dúzia de desajustados pode se assustar ao digitar a expressão no site de busca Google: há quase dez mil links com a palavra. Quem digitar em inglês, polyamory – que descreve relações que recusam a monogamia como princípio ou necessidade –, encontrará 1,16 milhão de links. A primeira conferência internacional sobre poliamor aconteceu em novembro do ano passado, na Alemanha. Kelly gostou tanto da onda que se tornou ativista. Na última Parada Gay de São Paulo, ela e um dos namorados distribuíram panfletos do movimento. Para Kelly, o poliamor cai como uma luva para aliviar o sofrimento dos bissexuais, que “não podem amar os dois sexos sem tanta confusão mental”. A estudante se diz bissexual, mas garante que seus parceiros não são. Eles, sem dúvida, acreditam que qualquer maneira de amor vale a pena.