"Meu padrinho é santo e ninguém queira duvidar." A canção entoada por milhares de romeiros em Juazeiro do Norte, interior do Ceará, parece ter sido ouvida pelos cardeais do Vaticano na semana passada. O padre mais famoso do Nordeste, uma das figuras religiosas mais conhecidas e cultuadas na cultura popular do País, obteve da Santa Sé uma carta de reconciliação, num gesto inédito na história da Igreja Católica. O anúncio foi feito pelo bispo da Diocese de Crato, Dom Fernando Panico, na cidade em que o sacerdote Cícero Romão Batista nasceu. Com a declaração, não há mais impeditivos para que o líder religioso brasileiro seja canonizado. O documento enviado pelo cardeal Pietro Parolin, o secretário de Estado do Vaticano, a pedido do pontífice argentino, relatava que Padre Cícero viveu uma fé simples, em sintonia com seu povo e, por isso mesmo, foi compreendido e amado. “Ele se tornou uma grande personalidade para a fé católica pelo poder de aglutinação com os mais pobres. E o papa Francisco tem mais sensibilidade com a fé popular”, diz padre Valeriano dos Santos da Costa, diretor da faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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DEVOÇÃO
Milhares de fiéis caminham em romarias até a estátua de 27 metros
de altura de Padre Cícero em Juazeiro do Norte (CE),
cidade que o sacerdote ajudou a fundar

O padre cearense arrebanhou uma legião de fieis, que seguem aos milhares para Juazeiro até hoje, pela forma com que se relacionava com as pessoas de menor poder aquisitivo. Apesar do grande carisma e apelo popular, o religioso foi suspenso pela Igreja em 1894, sob acusação de manipulação da fé. Em 1889, durante uma missa, a hóstia ministrada pelo sacerdote à beata Maria de Araújo se transformou em sangue. Segundo relatos, o fenômeno se repetiu diversas vezes e rapidamente a notícia do suposto milagre se espalhou. “As pessoas interpretaram como o sangue de Cristo e as romarias e procissões começaram a crescer cada vez mais”, diz padre Antonio Bogaz, diretor do filme “Sangue no Sertão”, sobre a vida do religioso. “Ao mesmo tempo, o bispo da região temia que, se a graça não se confirmasse, o povo poderia se afastar da fé.”

“Papa Francisco tem mais sensibilidade com a fé popular”
Padre Valeriano Costa, teólogo

A diocese de Crato formou então uma comissão de padres e profissionais da saúde para investigar o suposto milagre. Em outubro de 1891, o grupo concluiu que não havia explicação científica para os fatos e validou o milagre. Não convencido, o bispo convocou uma nova comissão, que considerou tudo uma enganação. Daquele momento em diante, a Igreja suspendeu as ordens sacerdotais de Padre Cícero. “Foi um período muito triste para ele, que chorava em discursos, andando pelas ruas e na porta da igreja”, afirma Bogaz. “As pessoas começaram então a chamá-lo para ser padrinho das crianças, já que não podia mais fazer batismos.” Em 1897, o Santo Ofício, hoje Congregação para a Doutrina da Fé, proibiu a permanência do religioso em Juazeiro, sob pena de excomunhão. Um ano depois, em Roma, o sacerdote chegou a ser absolvido, mas ainda assim, ao voltar para o Brasil, continuou impedido de celebrar missas.

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TRAJETÓRIA
Carismático, Padre Cícero (1844-1934) enfrentou diversas punições da igreja,
desenvolveu trabalho social e teve importante atuação política no Nordeste

 

Tempos depois, uma nova carta do Vaticano chega à diocese de Crato com o pedido de excomunhão. Dom Quintino, um bispo com quem Padre Cícero tinha uma boa relação, não chegou a entregar o documento ao sacerdote. “Ele engavetou a carta e escreveu uma espécie de manual de defesa do padre, pedindo a retirada da excomunhão”, diz Armando Lopes Rafael, historiador e chanceler da Diocese de Crato. Segundo Bogaz, a penalidade só é válida quando o documento é assinado pelo religioso excomungado. Muitas décadas depois, em 2006, Dom Fernando Panico, da diocese de Crato, deu entrada no processo de reabilitação na Congregação para Doutrina da Fé. Foi então que uma equipe de direito canônico concluiu que a Igreja deveria promover uma reconciliação com o religioso, morto em julho de 1934. Segundo o chanceler Rafael, a diocese de Crato não pediu ao Vaticano a revisão dos supostos milagres, nem está com pressa de entrar com pedido de canonização. “Nossa preocupação era com os romeiros, que sustentaram a devoção ao longo de anos. O que pesou nessa reconciliação foi a massa de fiéis que estava sem um reconhecimento espiritual.”

Além de religioso, o sacerdote foi um político atuante. Segundo o autor do livro “Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão”, o jornalista e historiador Lira Neto, ele ajudou a criar um pacto entre as elites agrárias e as políticas do sertão. Foi também prefeito de Juazeiro do Norte por 18 anos. “Ele era a maior liderança da região e reunia vontades de diversos grupos sociais”, diz o chanceler da diocese de Crato. “A menina dos olhos dele era o desenvolvimento de Juazeiro, por isso usava as elites rurais para beneficiar as pessoas mais pobres.” Agora, os devotos do padre ou padim – como foi carinhosamente apelidado pelos fies – deverão aguardar ansiosos até que a figura mais carismática do Nordeste se transforme em santo brasileiro.

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