A noite é a perplexidade do dia, e é por isso que, nas insônias, outras tantas perplexidades andarilham pela nossa alma. Ainda ontem perdi o sono, olhei para a minha shih tzu e lembrei-me de personagens machadianos que conversam com seus cães. Recordei-me de uma frase do próprio Machado: “o que difere o homem do cachorro é a sua capacidade de fazer com que um dia não se pareça com o outro”.

O andarilho da minha cabeça começou então a trazer-me perplexidades, e a primeira delas foi o sentimento de que há gente que faz do Brasil um País-cachorro: dia e noite se sucedem, idênticos, e as mesmas perplexidades se repetem diuturnamente. Pus-me então num monólogo mental com a cadela. É mais elegante tratá-la pelo nome com o leitor: a shih tzu se chama Teia.

Pois é, Teia, “tem pedalada na microcefalia”, soletrou-me baixinho o andarilho da insônia. Pura repetição nesse Brasil onde se manipula algarismos para caiar a realidade encardida. Até agora todo médico do planeta trabalhou com o seguinte critério: criança com perímetro cefálico de trinta e três centímetros é saudável, abaixo dessa medida é portadora de microcefalia. Como no País nenhuma autoridade do governo federal sabe ao certo o que fazer com a epidemia, pedalou-se, encolheu-se a fronteira e decretou-se que o bebê que nascer com trinta e dois centímetros de perímetro cefálico também é normal.

Não importa se ele apresentar ao longo dos anos déficit cognitivo. Surge assim um novo procedimento na medicina: o diagnóstico por decreto. E lá veio o velho andarilho com outra perplexidade: “não é que de repente surgiu ‘o japonês bonzinho?!’”.

Em todas as operações da Lava Jato lá está ele, óculos escuros e geralmente à direita do preso que conduz, gestos calejados e fisionomia tranquila, talvez sonolenta por acordar tão cedo para prender gente às seis da manhã. No áudio que levou à cadeia o senador Delcídio do Amaral, aparece “o japonês bonzinho” como suspeito de passar depoimentos sigilosos a partes interessadas nos inquéritos. Se isso for verdade, fiel Teia, então temos um corrupto escoltando corruptos? Ele já foi preso em flagrante por contrabando, voltou à PF, agora virou meme na internet e marchinha de carnaval. Inocente ou culpado, o que não vale é a gente cair no relativismo oportunista de que a corrupção é inerente ao homem e não há o que possa ser feito. Isso é niilismo. Nada tira da Lava Jato o mérito de estar sendo a mais importante ação contra a bandalheira no Brasil. E corrupção tem jeito sim, é só punir os corruptos, sejam eles conduzidos ou condutores – afinal, corrupto é também o nome de um crustáceo decápode que vive na areia, mas isso não significa que todo crustáceo decápode seja um corrupto.

Ainda era noite quando senti que a poeira do sono começava a bater nos olhos, e fui ouvindo mais perplexidades: o autoritarismo do PT e o seu desprezo pelo Estado de Direito. O partido protocolou no STF ação para extinguir a possibilidade do impeachment de Dilma, mas como não gostou do relator sorteado esqueceu-se do princípio constitucional do juiz natural e tentou retirá-la. Com esse gesto o PT desrespeitou toda a Corte, que vem eticamente cumprindo a função constitucional de preservar a democracia e o Estado de Direito. O ato do PT me deixou de vez em vigília. Olhei da cama para o chão, Teia parecia sonhar. O andarilho me empurrou novamente para Machado de Assis, dessa vez à cena VII de “Tu, só tu, puro amor”, na fala de Camões: “um sonho… às vezes cuido conter, cá dentro, mais do que meu século…”. 

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