Uma enorme cova coletiva acaba de ser descoberta nos arredores de Sinjar, no Iraque, perto da fronteira com a Síria. “Vi muitos ossos e tufos de cabelo”, diz o prefeito recém-empossado, Mohama Khaled Kasim. “Os restos de mais ou menos 80 mulheres, de 40 a 80 anos de idade, foram jogados ali.” A explicação para a faixa etária das vítimas é macabra. Separadas das mais jovens, usadas como escravas sexuais pelos terroristas do Estado Islâmico (EI), elas são consideradas “inúteis”. Pior: não são muçulmanas, mas yazidis, parte de um grupo étnico-religioso cristão de 1 milhão de pessoas com forte presença no Curdistão iraquiano. “Elas foram assassinadas sem piedade”, diz o prefeito. Os vizinhos, amedrontados, ouviram os tiros. Os corpos estavam no local havia um ano, mas só no início de novembro foram descobertos. No dia seguinte, outra cova coletiva foi encontrada a 15 km da cidade. Nela estavam os corpos de 60 homens, mulheres e crianças. É manhã do sábado 14, um dia depois dos atentados de Paris e da retomada de Sinjar, até então dominada pelo Estado Islâmico, por uma operação conjunta de combatentes curdos, yazidis e aviões dos Estados Unidos. A cidade no noroeste do Iraque, bem como um grupo de vilarejos ao redor, havia sido dominada pelos terroristas no verão de 2014. Na ocasião, milhares de yazidis fugiram para as montanhas ao norte, enquanto eram perseguidos, sequestrados, torturados e assassinados. Esse fato marcou o início da intervenção americana contra o Estado Islâmico.

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RETOMADA
Combatentes curdos entram em Sinjar após derrotar o EI

Na sexta-feira 13, mesmo dia dos ataques terroristas em Paris, cerca de 7.500 combatentes avançaram sobre Sinjar, após horas de intensos bombardeios dos Estados Unidos. “O Estado Islâmico mal conseguiu resistir”, diz Kasim Simo, chefe de segurança de Sinjar. A maioria dos 400 jihadistas já havia sido morta pelos mísseis e pelos tiros dos americanos, disparados a partir de jatos A10 “Warthog”, projetados especialmente para ataques ao solo e combate anti-tanque. Alguns militantes do EI conseguiram fugir para o sul, de carro. Outros dirigiram para o oeste, em direção à Síria, levando mulheres sequestradas para servirem de escudos-humanos. Apenas um pequeno número permaneceu em Sinjar e de fato lutou. “No fim, foi uma retomada fácil”, diz Simo. “Matamos mais ou menos 100 deles muito rapidamente. Não esperávamos que fosse assim.” A cooperação com os Estados Unidos, diz o chefe de segurança da cidade, foi crucial. “Somo muito gratos pela ajuda.”

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PODER DESTRUTIVO
Curdos recolheram mais de 10 toneladas de explosivos deixadas em Sinjar pelo EI

A liberação de Sinjar tem importância estratégica por causa da Rota 47, uma estrada esburacada que passa pela cidade e vai de Mossul, no Iraque, até Raqqa, na Síria, os dois quartéis-generais do Estado Islâmico. Por ela transitam petróleo – principal fonte de renda dos terroristas -, armas e pessoal. Os combatentes curdos iraquianos, chamados de “peshmerga”, se orgulham dessa vitória, que dividiu os jihadistas em dois e cortou a principal rota de suprimentos do Estado Islâmico. “O caminho está aberto para a retomada de Mossul”, diz Simo, sorrindo. “A única rota que o Estado Islâmico pode usar agora é uma estrada de areia para o sul.” Isso significa, além dos atrasos causados pelo terreno difícil, um desvio de mais de 100 km.

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Dois terços de Sinjar foram reduzidos a cinzas. O ar ainda mantém o característico cheiro de explosivos. Sobre as casas remanescentes, fumaça escura paira, vinda das inúmeras minas e bombas improvisadas que o Estado Islâmico deixou para trás. Combatentes curdos trabalham dia e noite para “limpar” a cidade dessas armadilhas mortais. Segundo o prefeito, 10 mil toneladas de explosivos foram encontradas em apenas dois dias. Nas ruas que já foram liberadas, moradores dirigem picapes abarrotadas de móveis e eletrodomésticos. Com a cidade livre do Estado Islâmico, muitos yazidis estão voltando para finalmente retirar os pertences das casas. “Isto é dos meus vizinhos”, diz um homem em uniforme militar, enquanto carrega geladeiras na caçamba. Omar, voluntário nas forças locais, explica que os yazidis fugiram da cidade quando ela foi tomada pelo Estado Islâmico. “Mas muitos árabes ficaram. Eles são muçulmanos, não têm nada a temer”, afirma. “Eles apoiam o Estado Islâmico e saquearam nossas casas.” A vingança vem na mesma moeda. Ou pior. Enquanto grupos invadem e roubam residências, um jovem tenta colocar fogo em uma casa. “Nossos vizinhos árabes viviam aqui, os traidores”, diz.

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IDENTIDADE
Cartões com dados dos jihadistas serão enviados a serviços de inteligência do mundo todo

A noite cai sobre Sinjar e a brisa gelada vinda das planícies de Nínive castiga as ruas. Sem eletricidade, a cidade fica escura e assustadora. Nas esquinas, civis, membros das forças de segurança e combatentes curdos se sentam ao redor de fogueiras. Numa base temporária, o escritório de Kasim Simo, o chefe de segurança, é tomado por uma pilha de pequenos papéis cor-de-rosa, verdes, amarelos e azuis, todos com o logo do Estado Islâmico. São cartões de identidade dos terroristas recrutados. “Estes são do pessoal local”, explica Simo, apontando para um amontoado. “A maioria vem de Mossul e Tal Afar.” Os nomes, locais de nascimento e idade ficam registrados nos documentos, que agora serão repassados aos oficiais de inteligência. Em outro canto estão os cartões de combatentes estrangeiros, dos mais variados países. Há alemães, chechenos, russos, azerbaijanos, tajiques… “Esses nós repassamos aos serviços de inteligência internacionais, junto com a foto de cada um deles”, explica Simo. A retomada de Sinjar demorou mais do que deveria. Problemas antigos entre o Partido Democrático do Curdistão, a oposição, feita pela União Patriótica do Curdistão e os curdos turcos – os PKK – impedem a unidade necessária à guerra. Apesar disso, todos concordam que a derrota do EI na região é de suma importância. As próximas batalhas devem acontecer em Mossul e Raqqa, na Síria, alvo de intensos bombardeios da França e da Rússia.

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O massacre dos Yazidis

 

Em agosto de 2014, entre 2 mil e 5 mil pessoas do grupo étnico-religioso cristão yazidi foram assassinadas pelo Estado Islâmico nos arredores de Sinjar, no Iraque. O massacre se seguiu ao cerco da cidade pelos terroristas, que forçaram a fuga de 200 mil pessoas. Cerca de 50 mil yazidis buscaram refúgio nas montanhas Sinjar, ao norte do povoado. Sitiados pelo Estado Islâmico, eles eram bombardeados, viravam alvo de “snipers”, passavam fome e sede. Quando capturadas, as mulheres mais jovens se tornavam escravas sexuais. Foi esse cerco que precipitou a entrada dos Estados Unidos na luta contra o EI, por meio de ataques aéreos e do envio de tropas especiais. Apenas no dia 13 de agosto, dez dias após a tomada de Sinjar, o cerco às montanhas foi encerrado.

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Fotos Alberto Prieto