A pintura “As Mulheres de Argel”, de Picasso, tem recorde de tela mais cara do mundo, arrematada por quase 180 milhões de dólares num leilão da Christie’s. Mas quando Pablo Picasso se estabeleceu em Paris no começo do século XX, ele era tão pobre que revezava a única cama de um quarto alugado em Montmartre com o crítico e poeta Jacob Max. Dormia durante o dia para liberar o colchão para o amigo à noite, momento em que pintava ou eventualmente se deitava com as modelos que não conseguia pagar. Nessa mesma época, a alguns quarteirões do bairro boêmio, um crime abalaria a capital mundial da arte. A “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, fora roubada de dentro do Museu do Luvre em plena luz do dia de uma segunda-feira de 1911. O jovem Picasso e seu amigo escritor Guillaume Apollinaire se tornaram suspeitos do roubo.

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FINAL FELIZ
Anos depois de ser acusado de roubar a ‘Mona Lisa’, Pablo Picasso ainda fazia piada do caso

O filme “Pablo Picasso e o Roubo da Mona Lisa”, que estreia na quinta-feira 19, trata dessa passagem, que o intempestivo pintor andaluz tirou de letra e que no fim elevou a Gioconda à ícone máximo da arte europeia. O crime foi desvendado dois anos depois. Um ex-funcionário do museu admitiu ter levado a tela de volta à Itália de origem como um gesto patriótico que mais tarde se revelou uma falácia para esconder uma motivação de ordem prática. O ladrão que nada conhecia sobre arte teria decidido pela obra por seu tamanho pequeno: o quadro mede 53 por 77 centímetros.

O que mais importa no longa-metragem do espanhol Fernando Colomo, porém, não é o crime que ocupou por semanas as manchetes dos jornais de todo o mundo. Mas sim a interessante relação entre as figuras que compuseram o centro vital da arte moderna, que vivia o ápice naqueles anos antes da eclosão da Primeira Grande Guerra. Com humor e bastante liberdade poética para reconstruir os personagens, o espanhol Colomo mostra, como dentro dos círculos mais vanguardistas, resistiam bolhas conservadoras ou ainda como o discurso internacionalista escondia o nacionalismo francês.

O grupo de Picasso era quase todo composto por parisienses de nascença, como o pintor Georges Braque e o poeta Max Jacob, de ascendência judaica, também era natural da França. Mas apenas ele e Apollinaire, os estrangeiros do círculo, foram convocados a depor sobre o roubo da tela renascentista.

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FORMAÇÃO
Cena do filme ‘Picasso e o Roubo da Mona Lisa’: retrato da fase em que o
pintor (vivido por Ignacio Vivancos, ao centro) era jovem, pobre e desconhecido

No filme, a conhecida disputa entre Henri Matisse e Picasso é um comentário um tanto cômico e quase caricato do mestre empedernido já reconhecido e respeitado que despreza e desafia o artista iniciante. Matisse foi amigo e uma influência fundamental para o futuro criador da “Guernica”. Conta-se que a tela “Les Demoiselles d’Avignon” – considerada obra fundadora do movimento cubista — foi uma resposta de Pablo Picasso aos “Nus Azuis” do fauvista francês.

No longa espanhol, Picasso é muito mais simpático e a plateia é levada a torcer por ele. Na prática, o cubista experimentou de um reconhecimento internacional bem mais veloz e abrangente que o do “mestre”, como todos do círculo se referiam a Matisse. Bem se sabe a participação nesse sucesso da personalidade tão irascível como irreverente do pintor. Anos depois da solução do crime, pousou para uma fotografia segurando uma reprodução da “Mona Lisa”, imagem que abre esta reportagem.

O filme cobre o primeiro casamento de Picasso, com Fernande Olivier e o atelier-alcova em que conviveram com artistas, marchands e boêmios de todo tipo. O machismo de Picasso antes de se tornar o disputado e reverenciado é mostrado com tantos cuidados que seu ciúme chega a enternecer. Também sua reconhecida ambição e egoísmo são quase transparentes no retrato de Colomo, que fica como um espelho quebrado onde faltam muitos pedaços.

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Fotos: DIVULGAÇÃO, Reprodução