Quando um paciente toma um remédio errado cria-se na medicina a singular situação de colocar a vida em risco em vez de protegê-la. E o engano pode até ser sutil, mas os efeitos devastadores. As conseqüências vão de um mal-estar, como uma intolerância gástrica, até a morte. Para preocupação das autoridades médicas, essas situações são mais freqüentes do que deveriam e já se configuram um fenômeno mundial. Nos Estados Unidos, por exemplo, pesquisas do Instituto de Medicina Americano mostram que sete mil pessoas morrem por ano em decorrência de complicações causadas por erros de medicação. No Brasil, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 50% dos medicamentos vendidos são prescritos, dispensados ou usados de forma inadequada. Em São Paulo, o Conselho Regional de Medicina registrou 80 denúncias de prescrição irregular nos últimos cinco anos. “Pode parecer insignificante, mas aponta situações que colocam em risco a segurança dos doentes”, diz Desiré Callegari, presidente do CRM.

Os equívocos são vários. De acordo com especialistas no assunto, 49% das falhas acontecem no momento da prescrição. Portanto, são de responsabilidade do médico. Em geral, ele indica um remédio inadequado à condição clínica do paciente, não observando se há possibilidade de alergia, por exemplo. Outros 26% ocorrem no processo de administração dos medicamentos. Nesse caso, a maior responsável é a equipe de enfermagem. Eles dão ao doente a droga errada ou a ministram na dose, diluição ou via de uso incorretos e até fornecem medicação não prescrita. Segundo as estimativas, outros 14% dos problemas são registrados na fase dispensação e 11% na interpretação das receitas. Ou seja, acontecem principalmente na farmácia. O mais comum é o profissional desses estabelecimentos não compreender o conteúdo do que foi indicado e fornecer a droga errada.

De acordo com a pesquisadora Silvia Helena Cassiani, da Faculdade de Enfermagem da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto, entre as causas deste cenário estão a falta de atenção, a inexperiência, o excesso de trabalho e a deficiência na formação acadêmica dos médicos, farmacêuticos e equipe de enfermagem. “Nomes similares de remédios, por exemplo, confundem o profissional. Isso leva a um terço dos erros”, afirma.

No Brasil, onde a maioria das prescrições é manuscrita, a letra médica constitui outra importante causa de erro. Para exemplificar os danos que uma grafia ruim pode causar, o farmacêutico Tarcísio Palhano, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, simulou uma receita com nomes de remédios inexistentes e escritos de forma ilegível. Seus alunos foram a 40 farmácias com a tal receita falsa. É inacreditável, mas eles conseguiram comprar 47 unidades de 17 diferentes tipos de drogas, entre eles antibióticos. “Os farmacêuticos erraram porque não estavam presentes ou não checaram a receita”, critica o professor. “Há um esforço para mudar isso, mas ainda se adota o mau hábito de interpretar a receita quando se deveria dirimir as dúvidas com os médicos”, afirma.

Na opinião do médico Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, a resposta para boa parte dos erros está na falta de conhecimento por parte dos médicos. Ele afirma que o profissional sai da universidade sem ter tido sequer uma aula de terapêutica, disciplina na qual se ensina como indicar corretamente uma droga. “A maioria aprende a prescrever com colegas ou com propagandistas de laboratório”, diz. E acrescenta: “Ele acaba indicando remédios sem conhecer os mecanismos de ação, o processo de absorção pelo organismo, sua toxicidade e tampouco a interação medicamentosa (influência de um medicamento sobre outro e seus efeitos no organismo)”, afirma.

Parte do problema está também na falta de comunicação entre médico e paciente. A consulta rápida não permite muitas vezes que o médico explique ao doente como o medicamento deve ser tomado, por exemplo. “Se o profissional dedicasse mais tempo ao paciente, o número de prescrição errada seria menor”, afirma Franklin Rubinstein, diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Situações dessa natureza foram identificadas num estudo da Universidade da Califórnia (EUA). Eles gravaram o atendimento feito por 45 médicos a 909 doentes. Para 45% deles os médicos indicaram remédios. Mas 66% dos especialistas não disseram por quanto tempo a droga deveria ser tomada, 45% não explicaram sobre a dosagem e 42% não mencionaram a freqüência das doses.

Alguns esforços estão sendo feitos para atenuar o problema. Nos EUA, boa parte das instituições informatizou seus sistemas de prescrição como forma de prevenção. No Brasil, a Anvisa, em parceria com as federações dos médicos e dos farmacêuticos, está formulando um plano de ação em favor do uso racional de medicamentos. Entre as propostas está a implantação de um programa que visa transformar a farmácia em um estabelecimento de saúde. Nessa concepção, o farmacêutico poderá orientar sobre o uso correto de remédio e registrar os casos de reações adversas e se o remédio está fazendo mal ao doente. “É importante que esses profissionais estejam preparados. Eles estão mais próximos do paciente”, diz Raquel Grecchi, presidente do Conselho Regional de Farmácia/São Paulo.

Outras iniciativas partem dos hospitais. No Sírio-Libanês, em São Paulo, o sistema implantado é o da prescrição eletrônica. A receita é digitada no computador e encaminhada à farmácia do hospital. Lá, é feita a checagem e enviada à enfermaria para que a droga seja administrada. “Mesmo depois de passar pela conferência do farmacêutico e do enfermeiro há uma vistoria feita pelo paciente ou familiar”, afirma Manoel Peres, diretor técnico do hospital. Além disso, antes de receber o remédio, o profissional lê o nome e a dosagem que está sendo administrada. Tudo para garantir o maior nível de segurança.