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O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, faz 70 anos em julho de 2016, pouco antes da Olimpíada do Rio de Janeiro. Até lá, planeja um salto em distância que ajude a mudar o momento brasileiro. O ministro está à frente de uma campanha batizada de Banho de Ética, do recém-criado Instituto Uniceub de Cidadania, que preside. A idéia é engajar cidadãos a votar útil e reduzir abstenções nas eleições. “A apatia não pode ser o mal da nossa geração”, diz ele, que lançou a idéia de uma renúncia coletiva da presidente Dilma Roussef, do vice-presidente Michel Temer, dos presidentes da Câmara, Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros. Ele falou a ISTOÉ que o País vive um impasse político e teme revoltas com o agravamento da crise econômica:

IstoÉ – O sr. lançou a ideia da renúncia coletiva da presidente e de seu vice, Michel Temer, do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e do presidente do Senado, Renan Calheiros, por não ver saída para essa crise?
Marco Aurélio Mello – Propus a ideia. Não podemos continuar com esse estado de coisas, em que não há um diálogo entre os poderes Executivo e Legislativo. E não havendo o entendimento, não se toma as medidas que impeçam o País de ir à bancarrota. Como governar dessa forma? O desemprego está se agravando. Claro que julgo as pessoas por mim. Numa situação dessas, eu teria essa iniciativa. Colocaria em segundo plano um interesse individual para privilegiar o coletivo. A verdade é que o Brasil está parado. Há uma crise econômica. E é fato notório que não há governo.

IstoÉ – Não há governo?
Marco Aurélio – Não há governo. Isso é muito ruim. A pessoa que ocupa a cadeira de presidente da Republica precisa contar com apoio para governar. A presidente está superisolada, eu não queria estar na pele dela jamais. Como ela pode governar o País, se ela praticamente fala às paredes, sem uma ressonância maior? Fica muito difícil. 

IstoÉ – O sr. já mencionou que dificilmente a presidente renunciaria.
Marco Aurélio – Na história recente do Brasil, só tivemos uma renúncia, que foi a do presidente Janio Quadros.

IstoÉ – O presidente Fernando Collor renunciou antes do impeachment…
Marco Aurélio – Ele renunciou quando estava tendo início o julgamento no Senado Federal. E deu no que deu. Não sei se hoje o País está melhor. Eu acho que está pior. Acho que o ocorrido no passado foi muito traumático para a sociedade. Implicou num desgaste, inclusive internacional, para a nação.

IstoÉ – Como vê a situação do presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha?
Marco Aurélio – A situação é embrionária. Estamos na fase de inquéritos. Temos de aguardar instruções, se houver processo crime com recebimento de denúncia. Uma delas já foi apresentada pelo Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Claro que é preciso ouvir o acusado para deliberar se é o caso de receber ou não a denúncia. Enquanto ele for presidente da Câmara, o recebimento ou não cabe ao plenário. Cabe aguardar, não há espaço para açodamento, sob pena de não se observar o figurino legal. E é preciso buscar a definição da responsabilidade. Se o juízo, depois da compreensão da culpa, ficar realmente sedimentado, aí a consequência será a condenação. Mas, por ora, é cedo para invertermos a ordem natural e presumirmos a culpa. Agora, os fatos que têm vindo à tona são por todos os títulos lastimáveis. Principalmente, porque se trata de um homem que está presidindo a Câmara dos Deputados.
 
IstoÉ – E que tem o poder de colocar em pauta um processo de impeachment da presidente da República…
Marco Aurélio – Aí é que está. Pela lei 1.079,- e estou apenas retratando o que está na lei – o pedido de impeachment tem que ser submetido, a quem? Não é ao presidente da Câmara, mas ao colegiado da câmara, aos 513 deputados, que, então, votarão para saber se deve ter seqüência ou não o processo de impeachment. A lei prevê um procedimento todo próprio. Primeiro: saber se o pedido de impeachment está direcionado contra alguém que continua na cadeira de presidente da Republica. A resposta ai é notória, porque a presidente Dilma Rousseff continua no exercício do mandato. Segundo: se a peça apresentada visando o impeachment, não é uma peça apócrifa, sem sentido. Ultrapassados esses dois obstáculos, cabe pela lei criar uma comissão de representantes de todos os partidos para emitir um parecer sobre a possibilidade ou não de se dar sequência ao pedido. Se a manifestação for positiva, deve ocorrer a instrução. Ouvir o interessado, que é a presidente da República, colhendo-se depoimentos, se forem requeridos, para vir um novo parecer da mesma comissão pela procedência ou não do pedido de impeachment, que vai ser apreciado apenas para se deliberar. A Câmara decide se seguirá ou não o processo.
 
IstoÉ – E o segundo parecer?
Marco Aurélio – O segundo parecer é quanto à admissibilidade ou não do impeachment.  Se a Câmara, por maioria de dois terços, admite o impeachment, o que significa? Aí se tem o afastamento da presidente da Republica, que passa a receber seu salário pela metade. E o processo é, então, encaminhado ao Senado, que é o órgão competente para julgar a admissibilidade da acusação, proclamando a procedência ou improcedência do impeachment. Ou seja, quem define se o pedido de impeachment deve ter sequência, não é o todo poderoso presidente da Câmara. Seria um poder muito grande para um homem único, não é? Pela ordem jurídica existente, pela lei aprovada pelo Congresso, ele não tem esse poder. Isso é um equívoco. É não ler a lei 1079, de 1950, que  definiu o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor.

IstoÉ – O sr. concorda que, para o cidadão comum, é difícil aceitar a ideia de permanência de um presidente da Câmara com bens e contas bloqueados e sequestrados?
Marco Aurélio – Deve prevalecer o princípio constitucional da não culpabilidade. Claro que é indesejável. O presidente da Câmara deveria ser um deputado acima de qualquer suspeita. Mas ainda não há culpa formada e temos de ver a  realidade…

IstoÉ – Por mais rodriguiana que ela seja?
Marco Aurélio – Por mais, por mais que seja… Temos de observar a realidade.

IstoÉ – A postura da oposição faz parte legítima do jogo político?
Marco Aurélio – Uma coisa é o jogo político, outra coisa é o direito positivo, que tem de ser observado. Paga-se o preço por vivermos em um Estado democrático de direito. Qual é o preço: o respeito irrestrito à Constituição Federal. Quem define as regras do jogo não é o presidente da Câmara, criando o critério de plantão.

IstoÉ – As pedaladas fiscais são suficientes para a abertura do processo de impeachment?
Marco Aurélio – Eu não sei. Cabe à Câmara definir se há fato jurídico suficiente a respaldar o processo de impeachment. Agora, o mais importante é que se suplante esse impasse que inviabiliza a tomada de providências quanto à crise econômica, que está afetando a sociedade . O desejável é que ocorra o entendimento entre o poder Executivo e o poder Legislativo para a tomada de providências para que saiamos da crise.

IstoÉ – A sensação é de que a corrupção tomou conta de tudo. O que acontece com uma nação quando perde a confiança e a esperança?
Marco Aurélio – Quando se perde a confiança e a esperança, a nação fica esfacelada. Essa história de que o povo brasileiro é pacífico, que não é dado a situações ruidosas e penosas, isso tem limite. O que aumenta a cada dia é o desemprego, isso é terrível. O cidadão fica revoltado. Nós vimos quebra-quebra nas manifestações de 2013. Foram atacados prédios públicos e privados e a população se mostrou agressiva. Eu até cunhei uma máxima, segundo a qual a palavra de ordem “Vem pra rua” deveria ser substituída por “vem para a urna”, para tentarmos eleger bons representantes, no pleito de 2014. A sociedade tem o costume de posar de vítima, mas ela mesmo é responsável pelos políticos que foram eleitos e praticam atos que repercutem em nossas vidas. 

IstoÉ – O  sr. acredita num recrudescimento que resulte em revoltas populares mais sérias?
Marco Aurélio – Acredito. As circunstâncias não nos asseguram a tranqüilidade. Me coloco na posição do cidadão comum que perde seu emprego, que já não tem a fonte do próprio sustento e constata,  por exemplo, que a corrupção chegou a um ponto inimaginável,  como mostram os fatos ligados  à operação Lava Jato. Isso gera um inconformismo e uma revolta muito grande. Nós estamos numa fase de letargia. Não se consegue suplantar essa crise econômica e financeira. Como é que fica o cidadão que tinha um emprego, que provia a família, deixa de trabalhar? Não sei. Há outro dado que ninguém leva em consideração. Em 44 anos, houve um crescimento populacional de 130%. Você se lembra do refrão da Copa do Mundo de 1970?  “Noventa milhões em ação, prá frente Brasil, salve a seleção…” Hoje somos 205 milhões de habitantes. A saúde, a segurança pública, a habitação, o saneamento, o transporte e o trabalho cresceram nessa mesma proporção? Não. O contexto gera muito temor.

IstoÉ – O que o sr. mais teme?
Marco Aurélio – Que a paciência da população se esgote e que exija a intervenção de forças repressivas. Isso será muito ruim. O risco de ruptura é sempre latente, ele surge em função do considerável inconformismo da sociedade. É fácil a pessoa falar quando a crise ainda não a alcançou. Mas quando a fonte de sustento seca, é um caso sério, porque surge uma revolta interior do homem de bem e trabalhador. Mas a apatia não pode ser o mal da nossa geração. Nós somos responsáveis pela busca da correção de rumo e pela construção do Brasil sonhado.

IstoÉ – Com que Brasil o sr. sonha?
Marco Aurélio – Com um Brasil que revele mais segurança, que atraia a respeitabilidade internacional, um Brasil em que se tenha um equilíbrio mínimo na distribuição de rendas, e um Brasil no qual os serviços essenciais, como a saúde, a educação e  a segurança pública realmente funcionem.

IstoÉ – O sr.  teme pela democracia também?
Marco Aurélio – Risco à democracia, não temo. Porque vivemos ares democráticos, constitucionais, e não há campo para retrocessos, ao meu ver. O que nós precisamos é de correção de rumos, que os poderes Executivo e Legislativo se entendam. Os interesses políticos paroquiais não podem prevalecer. Hoje, há um esgarçamento constitucional visível, o que é muito ruim para tirar o Brasil da estagnação.  Mas as instituições estão funcionando, a Polícia Federal, o ministério público a magistratura. Isso é um alento que nos dá esperança de dias melhores.

IstoÉ – O sr. tem dito que o Brasil necessita de um banho de ética e encabeçará uma campanha no Instituto Uniceub de Cidadania, que preside...
Marco Aurélio – O Brasil realmente precisa de um banho de ética. E ele passa pela cidadania em geral. Não se trata de um banho de ética apenas para os detentores de cargos públicos, deve atingir o povo brasileiro. E para termos esse avanço, é indispensável voltar os olhos para a educação. Somente assim vamos progredir.

IstoÉ – Falta ao País um corpo dirigente mais preparado, com mais  integridade?
Marco Aurélio – Não só mais preparado, falta um corpo dirigente mais compenetrado de que o cargo público é ocupado para servir aos semelhantes, e não em beneficio próprio e de sua família. No entanto, e isso é alvissareiro, graças a uma imprensa livre, os problemas não são mais escamoteados e varridos para debaixo do tapete.  Eles são escancarados e as instituições funcionam, como vêm funcionando a Polícia Federal, o Ministério Público e a Magistratura.

IstoÉ – Depois do mensalão, surgiu o petrolão, com níveis de corrupção numa escala tão  maior…
Marco Aurélio – Em 2006, eu disse que havia surgido o maior escândalo da Republica, com o mensalão. Hoje, eu devo dar a mão à palmatória, por que o mensalão da Ação Penal  470, é fichinha em relação ao novo escândalo. Depois do escândalo na Petrobras, eu diria que o mensalão poderia ser julgado pelo juizado de pequenas causas. Os freios não funcionaram pelo sentimento de impunidade que reinou e que vai ser varrido do cenário nacional, ante o funcionamento das instituições.

IstoÉ – De tempos em tempos, o País elege um salvador da pátria. Agora é  o juiz Sergio Moro. O ministro Joaquim Barbosa também teve o seu momento. O Brasil precisa de heróis?
Marco Aurélio – Nós somos carentes de homens exemplares. Quando alguém começa realmente a cumprir o seu dever, devemos louvá-lo e excomungar aqueles que não são apegados aos valores essenciais da vida pública. Aí,quando surge alguém que está cumprindo o seu dever, passa a ser herói, como se fosse o salvador da pátria. Nós temos, no Brasil, muitas pessoas compenetradas no dever de servir. No campo da Magistratura, não temos apenas um juiz, no País. Temos milhares de juízes.

IstoÉ – Na hipótese utópica, como o sr. definiu, da renúncia coletiva acontecer, o que viria depois?
Marco Aurélio – Teríamos uma nova eleição. Primeiro, para a presidência, posteriormente eleições para as casas legislativas. Nós temos homens de bem, no País. E que se parta para a escolha dos homens de bem.

IstoÉ – Como o sr. avaliou a busca e apreensão na casa do filho do presidente Lula, Luis Claudio?
Marco Aurélio –Tudo muito lastimável. O desejável era não haver esses fatos, desagradáveis para eles e para a sociedade. Mas as instituições estão funcionando. Se houve desvio de conduta, que seja apurado. E se configurado, que pague pelo desvio quem o cometeu. Estamos vivendo tempos estranhos, de abandono de princípios, inversão de valores, o dito passa pelo não dito, o certo pelo errado. E ficamos perplexos com tudo. E não se avança culturalmente.

IstoÉ – Como o sr. avalia a atuação do ex-presidente Lula, neste momento?
Marco Aurélio – O ex-presidente Lula, como você disse muito bem, é um ex-presidente. Ele é um cidadão. Ele precisa, tanto quanto possível, dar o exemplo. Não faço comentários quanto a essa ou aquela fala do ex-presidente. O que eu penso é que um ex-presidente da República deve ser um farol. Deve ser um norte para os brasileiros em geral. Será que podemos tomar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um norte para os cidadãos em geral? Tenho minhas dúvidas. Ele não é um semideus. A não ser os  programas sociais, que aumentaram para se corrigir as desigualdades, eu não vejo outros atos do ex-presidente Lula que mereçam elogios.

IstoÉ – O sr.  acredita que o PT esteja destruído como partido?    
Marco Aurélio – Isso é visível. Imaginávamos que havia um partido no Brasil, que era o PT, e que viria para implantar transformações, inclusive culturais. A verdade é que ficamos todos decepcionados com o desempenho do partido. 

IstoÉ – E sobre a hipótese do vice-presidente Michel Temer assumir a presidência, no caso do impeachment da presidente Dilma?
Marco Aurélio – É uma possibilidade. Que ele componha um governo de coalizão para enfrentar um mal maior: a crise econômica. Assim como aconteceu, no passado, como o presidente Itamar Franco, que teve um desempenho elogiável. 

IstoÉ – O sr. tem dito que o processo de impeachment costuma ser traumático. Por quê?
Marco Aurélio – O processo de impeachment não está num quadro de normalidade. O quadro de normalidade conduz a presumir-se que o mandato será cumprido à risca. Ou seja, praticando-se atos de interesse da nação. Não é um ato de vontade. A renúncia é um ato de vontade espontâneo, muito embora com consequências bem sérias. Já o impeachment ocorre se o motivo para o pedido for julgado procedente, o que levará o governante a ser apeado do cargo.
 
IstoÉ – No parlamentarismo o processo de troca de governante é menos traumático?
Marco Aurélio – Muito menos. Se vivêssemos no parlamentarismo, já teríamos um outro governo tocando o Brasil. Se o Brasil fosse parlamentarista e ela fosse a primeira ministra, Dilma já teria caído. O que ocorre é que, no presidencialismo, temos essa concentração de poder, mas que não é uma concentração absoluta.  E não pode ser.

IstoÉ – A presidente Dilma enfatiza que não aconteceu nenhum crime de responsabilidade no governo dela.
Marco Aurélio – Não sei, isso caberá à Câmara e, posteriormente, ao Senado, caso for admitido o processo de impeachment, definir. Nós precisamos aguardar. Eu não conheço sequer o parecer do TCU. Não tenho tempo para examinar nem os meus processos e a minha relatoria, que dirá os processos outros.

IstoÉ – O  filho do ex-presidente Lula, Fábio, pediu acesso à delação premiada Fernando Baiano e ele foi negada pelo Supremo. Por quê?
Marco Aurélio – Processo algum pode ser cercado de mistério. Se há algo que já está encartado nos autos, há o direito de acesso daquele envolvido e de seus representantes legais. Esse é o princípio básico, sob pena de não observarmos o devido processo legal. O mistério deve ser afastado: no âmbito da administração pública, a regra é a publicidade. Por exemplo, se dizem que estou envolvido, que a delação me alcançou, eu tenho direito de acesso para me defender do objeto da delação. Esse é um príncipio que eu repito há 36 anos, como juiz.
 
IstoÉ – Como o sr. vê a quantidade de  delações premiadas da Lava Jato?
Marco Aurélio – Vejo como consequência da condenação de Marcos Valério a 40 anos de pena restritiva de liberdade, que ocorreu no mensalão. E o que está se verificando é que eu nunca vi tanta prisão preventiva quanto delação em minha vida. As pessoas estão colocando as barbas de molho e tentando obter, quem sabe por terem culpa no cartório, uma pena não tão grave. Hoje, a nossa população carcerária provisória está praticamente no mesmo patamar dos presos em definitivo, em que pese o princípio da não culpabilidade. Alguém só pode ser considerado culpado quando não caiba mais recursos para a sentença condenatória. Há alguma coisa errada aí.

IstoÉ – O sr. entende a prisão preventiva como forma de pressão para provocar a delação premiada?
Marco Aurélio – Isso é péssimo. Você não pode simplesmente prender um homem, tirar sua liberdade, para fragilizá-lo e, com isso, chegar ao objetivo. Em Direito, o meio justifica o fim, não o inverso.