A cada 14 dias, Floriano Castorino protagonizava a mesma cena. Beijava os três filhos, se despedia da mulher, Vanúzia Carvalho, e partia para mais uma jornada em alto- mar. Distante da costa, Castorino ficava 14 dias embarcado na plataforma P-37, no Campo de Marlim Sul. Era lá na terra do petróleo da Bacia de Campos, no litoral norte fluminense, que o encanador batia ponto. Às vésperas de completar um ano de trabalho como funcionário terceirizado da Petrobras, Castorino morreu. O acidente ocorreu em janeiro último, quando ele fazia mais um serviço em nome da empresa de engenharia Ultratec.

A causa mortis foi envenenamento. Castorino tentava trocar uma válvula na casa de bombas da P-37 quando começou o vazamento. Em poucos minutos, o ambiente cheirava a ovo podre. Em vez de abandonar o posto, tentou continuar o trabalho. Seu erro foi ignorar o acidente e inalar o cheiro que tomava conta do ambiente. Esqueceu o risco que corria ou não foi informado de uma das lições básicas para quem trabalha na indústria de petróleo: fugir ao menor sinal do cheiro de ovo podre no ar e só voltar munido de cilindro de oxigênio. O odor denuncia vazamento de um gás tóxico e letal, o H2S ou gás sulfídrico. Junto com Castorino estava Francisco Jesus, que também morreu pelo mesmo envenenamento. Francisco morreu na hora, e Castorino, a caminho do hospital.

Ambos fazem parte de uma estatística pouco auspiciosa para a Petrobras: a de vítimas de acidentes fatais. Já somam 103 o número de empregados mortos nos últimos três anos. Seria uma fatalidade o fato de praticamente 74% desses acidentes envolverem funcionários terceirizados? Para o presidente da Federação Única dos Petroleiros (FUP), Maurício França Rubem, a resposta é não. “O grande problema é que o funcionário terceirizado não tem a mesma percepção do risco que um petroleiro de carreira”, denuncia. A terceirização é apontada hoje por nove entre dez sindicalistas como a principal causa dos acidentes fatais na estatal.

Esse processo começou no início da década de 90. Os primeiros alvos foram as áreas de apoio. Naquela época, os petroleiros fizeram vista grossa e não chegaram a criticar a atitude da estatal. Só que a terceirização foi ganhando vida própria e crescendo na direção de áreas consideradas estratégicas para o processo de produção. Foi quando a relação desigual entre a mão-de-obra da casa e os prestadores de serviço começou a preocupar os sindicalistas. Hoje são 35 mil petroleiros da Petrobras contra 90 mil terceirizados.

A direção da Petrobras discorda da tese dos sindicalistas que aponta para uma relação direta entre empregados terceirizados e acidentes fatais. Mas o gerente de segurança da empresa, Cid Valério, admite que a estatal está preocupada com as estatísticas. “Esse tipo de acidente não é tolerável.” Mortes por asfixia, envenenamento e explosão são algumas das causas mais comuns nos acidentes fatais dos últimos três anos. Pressionada por todos os lados, a Petrobras parece ter resolvido agir. Está elaborando um programa que visa reduzir a incidência de acidentes fatais. “A meta é atingir em 2010 um padrão de excelência internacional”, garante Valério. Ele não dá detalhes sobre o plano, mas garante que será grandioso em termos financeiros.

Recusa – Paralelamente, a Petrobras concordou, depois de muita pressão, em incluir no dissídio deste ano o direito de recusa. É uma das cláusulas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a de número 60, que prevê o direito do trabalhador de rejeitar determinado serviço, caso não se sinta preparado. Outra iniciativa foi concordar em fazer parte de uma comissão com a FUP e o Ministério do Trabalho para discutir a causa dos acidentes. Depois de cortar pessoal daqui e dali, a estatal também parece disposta a rever sua política de enxugamento. No ano passado, foram admitidos 506 funcionários e estão previstas novas vagas para 642 empregados de nível médio e outras 814 de nível superior.

Apesar das iniciativas, o fantasma da terceirização continua rondando o prédio da estatal no centro do Rio. Uma divergência interna tem colocado diretores da empresa em campos opostos. Se dependesse do diretor da Área de Exploração e Produção, José Carlos Coutinho, a terceirização seria aprofundada no lugar de aplacada. Do lado contrário está o ex-diretor de engenharia e serviços, Antonio Menezes – recém- empossado na nova diretoria de gás e energia. Ele é radicalmente contra a proposta do colega de direção. Em princípio, a corrente de Menezes estaria saindo vitoriosa. A sinalização é o fato de a empresa estar contratando em vez de continuar incentivando demissões.

De janeiro até outubro último já tinham sido computados 26 acidentes fatais na Petrobras, 14 deles envolvendo terceirizados. Geremias Canuto, por exemplo, morreu em fevereiro quando trabalhava, contratado pela Escom Construções, na Bacia de Campos. Rivanildo de Oliveira sofreu acidente em abril. Foi atingido por um guindaste quando trabalhava como plataformista da Sotep, em Sergipe. Walmir Ferreira, funcionário da MKS, faleceu em outubro depois de ficar 28 dias internado. Ele teve 28% do corpo queimado devido a uma explosão em um tubo de GLP na Refinaria de Capuava (Recap), em São Paulo.

Só no escritório do advogado carioca João Tancredo chega a 50 o número de ações de indenização contra a Petrobras empilhadas sobre sua mesa. “A Petrobras vem dando muito trabalho. A empresa faz de tudo para não pagar a conta”, acusa o advogado. Dos 50 processos, 70% envolvem empregados terceirizados vítimas de acidentes fatais. É o caso da viúva de Castorino, Vanúzia Carvalho, que briga na Justiça para aumentar o valor da indenização. A lembrança do marido reclamando das condições de trabalho não sai da sua cabeça. “Ele queria muito mudar de emprego. Se sentia trabalhando num navio-bomba prestes a explodir.” No dia do acidente, Vanúzia ficou sabendo que o marido trabalhava sem equipamento de segurança. “Essa lógica de produção maximizada tem gerado reflexos perversos na segurança industrial”, acusa o presidente regional da Federação Internacional de Sindicatos de Trabalhadores de Química e Energia, Luiz Gonzaga Tenório. A médica paulista Leda Leal Ferreira, da Fundacentro – órgão do Ministério do Trabalho destinado à pesquisa de saúde e segurança do trabalho –, está convencida de que as estatísticas de acidentes fatais estão custando muito caro à Petrobras. “A maior empresa brasileira não pode continuar com o seu nome associado a tragédias e mortes.” Produzindo diariamente 1,3 milhão de barris de petróleo, a empresa é um gigante que administra um faturamento médio anual da ordem de R$ 50 bilhões.

Apesar do gigantismo financeiro, a Petrobras estaria vivendo, na opinião da médica Leda Leal, uma espécie de “anorexia empresarial” com efeitos nocivos para a saúde da empresa. “A política de terceirização provocou sobrecarga de trabalho para todos, inclusive as gerências, crescimento do número de incidentes, acidentes e, o que é mais assustador, de mortes no trabalho.”