m cronista esportivo diria que o gol da vitória saiu nos descontos. Oficialmente, a reunião de representantes de 142 membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) já havia se encerrado quando, no início da noite da quarta-feira 14, surgiu o acordo. Um fracasso equivalente ao da sanguinolenta cúpula de Seattle, em 1999, já estava se desenhando em Doha, capital do Catar, quando houve a aprovação de uma nova rodada comercial, com duração de três anos.

Parece pouco. Afinal, um grupo de diplomatas passou seis dias discutindo e resolveu, a duras penas, que as conversas prosseguirão pelos próximos 36 meses. Mas, levando-se em consideração a quantidade de questões polêmicas (que vão das transações de banana a questões de patentes tecnológicas) adicionadas ao clássico desprezo das nações ricas pelas questões comerciais que envolvem seus primos pobres, o resultado pode ser considerado histórico.

O efeito prático será sentido em todo o mundo durante os próximos anos. A disposição de liberalizar o comércio mundial, pauta primordial da discussão que prossegue, adicionará uma renda extra de US$ 2,8 trilhões à economia global em 2015, segundo o Banco Mundial. Dos plantadores de arroz da China aos engenheiros do Vale do Silício, nos Estados Unidos, ninguém escapará das decisões tomadas nos próximos meses.

O discurso em voga entre os diplomatas do comércio é idêntico à bandeira empunhada pelos manifestantes reprimidos com violência em Seattle, há dois anos: a diminuição do fosso econômico entre as nações. “Ao concordar em lançar nova rodada de negociações, estamos ajudando a levar crescimento, desenvolvimento e prosperidade através do mundo. Estamos também dando um sinal de esperança para quase 150 nações”, disse, ao final dos trabalhos, o chefe da delegação e secretário de Comércio americano, Robert Zoellick.

Apesar dos discursos apaziguadores, a redação final do acordo envolveu uma série de artifícios retóricos para emplacar. Alguns assuntos de interesse dos países pobres – como investimentos e práticas de concorrência – ficaram para a próxima reunião.

Os representantes brasileiros voltaram para casa satisfeitos. O ministro da Saúde, José Serra, foi o que mais comemorou. Ele ajudou a dobrar a resistência dos grandes laboratórios farmacêuticos e, com um bloco de 50 países pobres, conseguiu uma redação favorável à quebra de patentes em casos que envolvam saúde pública. A conjuntura ajudou, já que no mês passado os Estados Unidos foram obrigados a negociar com a alemã Bayer a compra de dezenas de milhões de cápsulas do Cipro, o remédio que combate o antraz. A patente do medicamento sobreviveu ao episódio, mas poderia ter sido facilmente aberta se o texto do acordo, assinado em separado, já estivesse em vigência.

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A presença da Índia na briga das patentes também foi decisiva. Aliado de última hora do governo americano, por causa de sua proximidade com o Afeganistão, o país bateu pé firme e só assinou o acordo no último momento, para alívio geral nos salões do Sheraton de Doha. O Brasil se considerou beneficiado ainda com o novo tratamento que será dado às questões comerciais agrícolas, anteriormente tratadas fora do âmbito da OMC.

A reunião em Doha marcou também o ingresso definitivo da China no órgão – um fato que, em tempos de recessão global, agradou a todos. O país vinha negociando sua entrada na ciranda comercial global há 15 anos. Agora, analistas prevêem que a China criará um mercado de US$ 650 bilhões anuais para o resto do mundo. Uma bela injeção de dinheiro e, mais importante ainda, de ânimo para a comunidade comercial internacional. Para quem vinha projetando o apocalipse econômico desde 11 de setembro, o resultado da reunião – realizada a pouco mais de 1,5 mil quilômetros do Afeganistão – saiu melhor do que a encomenda. Enfim, uma boa notícia surgida no Oriente Médio.

Olha o poste…

Foi um colunista do diário americano Wall Street Journal quem melhor definiu a arrastada crise argentina: “É como assistir a um acidente de carro em câmara lenta”. No comando da máquina, o “piloto” Fernando de la Rúa esforça-se para tentar reverter o descrédito. Em um giro internacional na semana passada, encontrou George W. Bush – trinta minutos de conversa em um hotel nova-iorquino. Tempo para fotos e algumas palavras de apoio. Dinheiro que é bom, nada. Em seguida, foi à Alemanha, onde teve a mesma sorte. A maré de má notícias parece não ter fim: o FMI, que enviaria uma missão de técnicos à Argentina, mudou de idéia. Considerou que faltavam informações sobre os planos do governo para recolocar a economia nos eixos.

No fronte interno, De la Rúa finalmente conseguiu avançar no acordo com os governadores da oposição, agora dispostos a aceitar um corte na verba mensal que lhes é repassada e serve para bancar gastos com saúde e educação, por exemplo. Os gastos sociais, por sinal, fizeram outra vítima: a ministra da Previdência, Patricia Bullrich, que pediu demissão depois de entrar em atrito com sindicalistas.

Não é à toa que o termômetro que acompanha a saúde financeira argentina, o chamado risco-país, indica febre altíssima, mesmo depois do comemorado acordo com os governadores. Bateu sucessivos recordes e chegou a mais de 2.700 pontos na quinta-feira 15 (ou seja, o governo teria de pagar pelo menos 27% acima da taxa americana para emprestar no Exterior). Mas nem tudo está perdido: em uma casa de apostas de Londres, a seleção argentina é a grande favorita para Copa de 2002, à frente da França e do Brasil. Azar nos negócios, sorte nos gramados.

Luiz Antonio Cintra


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