Fernando Henrique Cardoso foi presidente do Brasil ao longo de 2.920 dias. Em muitos deles, ao final do expediente, registrava num gravador as suas reflexões sobre conversas, acontecimentos e pessoas com quem convivia no Palácio do Planalto, ocupado por ele entre 1995 e 2002. Gravava também a interpretação que dera a diálogos, gestos e fisionomia de interlocutores em festas, jantares e eventos sociais. Quando deixou o cargo, após oito anos de gestão em dois mandatos consecutivos, tinha em mãos 44 fitas que, transcritas, resultaram num precioso calhamaço histórico de quatro mil páginas. Parte desse material, treze anos após o ex-presidente ter ligado e desligado pela última vez o gravador, chega agora às livrarias, constituindo o primeiro volume (ao todo serão quatro) da obra “Diários da Presidência”, editada pela Companhia das Letras. Esse primeiro tomo tem 929 páginas e abrange o período do biênio 1995-1996.

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SOLIDÃO
‘O gravador tornou-se um padre confessor, o médico de minha alma. Nele, eu desabafava’

Do ato de congelar em fitas, digamos no calor da hora, aquilo que lhe ficara na mente e na emoção em determinado momento, vem a primeira dimensão de estadista de FHC. É o testemunho de quem “está” lá na Presidência da República, não de quem “esteve”, uma vez que lê-se hoje o que FHC gravou há mais de uma década – é psicologicamente o “passado presentificado”, ou, na mais pura metodologia da filósofa e pensadora Hannah Arendt, trata-se da única perspectiva de sobrevivência humana: a disposição de homens contarem o que vivenciam. A segunda dimensão do estadista reside na coragem de ele pôr tudo isso a público ainda vivo. Elimina assim qualquer perspectiva machadiana de “autor defunto” ou “defunto autor”. Vivo, FHC abre o seu testemunho como protagonista de um momento histórico, dá a cara a críticas, e sozinho. Nem dedicatória esse primeiro tomo tem.

As críticas começaram na forma de desmentidos por parte de políticos citados no livro, como se a obra se propusesse a ser a definitiva dona da verdade. Os desmentidos vão na linha do “não me lembro desse fato”, “não me lembro dessa conversa”, “não me lembro desse pedido de nomeação” – vão, enfim, na trilha da geleia geral da política brasileira, aquilo que FHC chama de o “beabá dessa política empobrecida”. Não é um livro, portanto, para ser discutido ideologicamente, embora nesse momento de caos o seu lançamento acabe sendo um ato político. Trata-se, assim, de um livro de reflexões, ainda que no ato de transcrição das fitas e de redação do texto alguns novos filtros da emoção possam ter pesado no resultado final. Em meio à diáspora da intelectualidade brasileira imposta pela ditadura militar, FHC e sua esposa, Ruth Cardoso (já falecida), vão para a França onde ela assiste a seminários de Jacques Lacan. É lacanianamente que se deve ler “Diários da Presidência”, ou seja, é preciso lê-los com os olhos de que “o real é tudo aquilo que não cessa de não se inserir no universo psíquico”. É preciso lê-los pela alma do sociólogo FHC refletindo sobre o dia a dia do político-presidente (“o gravador tornou-se médico de minha alma”).

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Disso brota um dos pontos mais surpreendentes da obra: nos oito anos de Brasília, vê-se um FHC intelectualmente perplexo com pessoas que o cercam: o amigo e então senador Antonio Carlos Magalhães age enciumado porque perdera parte da ribalta política; o amigo Sergio Motta tem de ser duramente advertido porque se mostrava “espaçoso” demais no palácio; Lula, no mais chinfrim populismo de oposição, vive a repetir que o fato de “alguém ser professor de ciência política não significa saber política”. Assim gravou FHC: “Lula posando outra vez de herói nacional (…) com uma frasezinha (…). Enfim, essa coisa deprimente, essa mediocridade (…)”. Ao se chegar à última página desse primeiro volume, tem-se um FHC quase desiludido. Vale perguntar por qual motivo foi então à reeleição, se “a luta está ficando cada vez mais (…) suja (…). Começa a ser tedioso estar na Presidência”. A única resposta, em se tratando do sociólogo destrancando a alma do político num gravador, só pode vir de Antonio Gramsci: FHC é da estirpe dos “céticos na inteligência mas otimistas na ação”.

Foto: Orlando Brito/obritonews