Jesus Cristo foi o cara mais underground que existiu. Cabelão comprido, roupas esquisitas, andava descalço, falava de paz e era perseguido pelos “normais”. A tese sustenta um movimento religioso diferente que se alastra por todo o País. É a chamada música extrema (baseada no rock pesado), que se dedica a apresentar o Senhor a quem vive à margem da sociedade. Tudo indica que o movimento nasceu na Europa. No Brasil, grupos começaram a se formar no início da década passada e agora ganham mais adeptos e visibilidade. Pastores com base evangélica, mas sem vínculo com as vertentes de igrejas tradicionais, levam os ensinamentos de Deus a pessoas consideradas underground. Folhetos da Comunidade Caverna de Adulão, de Belo Horizonte, conclamam “os deformados, sujos, desprezíveis, loucos, diferentes, anormais, anticristo” a conhecerem o verdadeiro Deus. Os próprios pastores são, comumente, ex-drogados, punks, clubbers, góticos e alternativos que sempre viveram fora do esquema. E continuam assim. Cheios de tatuagens e fãs do rock pesado, eles buscam seus iguais para falar de paz por meio, principalmente, da música hard, trash, heavy, tocada por bandas cristãs. É estranho ouvir uma voz gutural gritar, em meio a sons de guitarra, “Jesus é o Senhor!” Mas é assim que acontece – e funciona.

Os eventos, sem anúncio na mídia, ficam lotados. Dependendo do local, normalmente bares, galpões e outros espaços de festas, o público – jovens com roupas rasgadas, cabelos espetados e piercing pelo corpo afora – passa de mil pessoas. Para entender a mecânica é necessário despir-se de conceitos padronizados sobre religiosidade. Ao mesmo tempo que esses novos pastores desejam trabalhar com grupos unidos e amplos, eles não buscam convertê-los ou carregá-los para os templos, mas afastá-los do pecado. “O jovem seguirá seu caminho em paz. Se ele encontrar Jesus, mesmo que não o vejamos mais, nossa missão estará realizada”, explica o pastor Waldir Luis Teixeira da Silva, da Comunidade S 8, em Niterói, Rio de Janeiro.

O principal evento é a Sexta Rock, realizado há dois anos. “Nosso objetivo é atingir jovens que não iriam a uma igreja, considerada muito clara para o estilo de vida dark que levam”, explica o pastor. O evento é animado por bandas cristãs de vários estilos com mensagem de Deus. Tirando essa particularidade, ninguém diria que a Sexta Rock tem fundo religioso. Indumentárias e cenários remetem à imagem das tribos jovens atuais. O mesmo acontece em todas as outras comunidades. Das mais atuantes no País, a Zadoque, em São Paulo, promove festas que são verdadeiras ferveções. “Eu procurava felicidade no álcool e me encontrei aqui”, disse a punk Ana Batista, numa das festas da Zadoque.

Quase todo coberto de tatuagens, o pastor Enok Galvão criou o Ministério Metanoia (nome de uma banda cristã de death metal), em Bonsucesso, subúrbio carioca, há dez anos. Ele diz que “a conversão a Jesus Cristo não implica abandonar o estilo underground. Isto é, em parte. “Eu era rebelde, consumia drogas e tinha todos os problemas consequentes dessa vida. Depressão, incapacidade de adaptação, overdose. Resolvi procurar Jesus Cristo porque estava tudo demais na minha vida”, conta. Ao se converter, se perguntou: “Mas é preciso virar outra pessoa para Jesus me aceitar?” Concluiu que não, criou a Metanoia e resolveu evangelizar “uma galera” que era como ele. “A casa é de Cristo, todos são bem recebidos, mas nossa expectativa é de que abandonem a vida desregrada. Não dá para frequentar a igreja e continuar nas drogas.”

Templo – Os cultos, realizados duas vezes por semana, começam com louvor acústico (rock muito alto) enquanto as pessoas se sentam nas esteiras espalhadas pelo chão num templo dark. “As doutrinas apostólicas, os ensinamentos bíblicos, tudo é igual. Só muda a cultura”, explica Enok. “Entendemos que para servir a Deus não é necessário seguir nenhum padrão.” Às vezes, o pastor tenta ir a locais nos quais os jovens convivem com o crime. Numa dessas tentativas, Enok começou a trabalhar com garotos do tráfico de uma favela carioca. “Um dia, eu estava numa boca (ponto- de-venda de drogas) falando de Deus e um chefe (do tráfico) me mandou ir embora porque ninguém se aproximava para comprar.”

Se uma investida não dá certo, dezenas de outras resultam em conversão. É o caso de Aldo Sales Jr., cujo nome de guerra é Jr. Rotten Death. Ele encontrou a “luz da salvação”, como diz, na Metanoia. Sobrevivente de quatro overdoses, ele relembra uma das crises de depressão. “Estava em meu quarto e pensei: se Deus existe e aceita todo mundo, que me aceite como sou e me ajude.” Três semanas depois, conheceu Jesus – não o divino, mas o músico de carne e osso Delcimar de Carvalho Jesus, já convertido. Rotten Death passou então pelo que chama de “grande processo de purificação”. Hoje, ambos integram a banda cristã Blasterror. Normalmente vestido de preto, Rotten Death mantém o cabelo comprido até a cintura (“cinco anos e quatro meses sem ver a tesoura”) e uma tatuagem de um crânio com uma mandíbula decorando o braço.

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De modo geral, todos consideram a tatuagem uma espécie de simbologia bíblica. “É uma arte de comunicação imediata. Qualquer pessoa pode ver a mensagem de Deus que você está passando”, diz Enok. O também pastor Paulo Roberto Soares da Costa completa: “O visual mostra que somos contra os padrões estabelecidos. É uma rebeldia intuitiva, não é política.” Mas já teve reconhecimento político. Foi o que aconteceu com a Comunidade Caverna de Adulão, que recebeu homenagem especial da Câmara Municipal de Belo Horizonte por prestar serviços humanitários. Sob o comando do pastor Fábio Ramos de Carvalho, um grupo de jovens realiza trabalho com crianças de rua, pessoas infectadas com o vírus HIV e deficientes físicos. “Levamos consciência cristã a grupos urbanos que são contra o cristianismo. Mostramos que sem Jesus Cristo somos incompletos”, diz.

Caverna – As reuniões na Caverna agrupam cerca de 150 pessoas, das mais variadas tribos. Carvalho observa que os adolescentes estão cada vez mais presentes. No Rio, eles já têm um grupo quase exclusivamente teen: Comunidade C.H.B. (Christian Had Banger, grupo inglês que dissimilou uma maneira específica de dançar rock pesado: batendo cabeça). O pastor Leonardo Borges, o mais velho, 25 anos, diz que a faixa etária é de 15 a 17 anos. Há mais garotas, como a jovem Linn, que com seu visual punk não parece uma serva de Deus. As reuniões feitas ao som de trash metal como o da banda The joke? incluem luau, parques e halloween. “Acreditamos que Deus nos aceita como somos, independentemente de piercings, cabelos coloridos ou jeito de vestir”, diz Borges. Amém.


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