Não é tão simples encontrar livros de Leonardo Padura em Cuba. Muitos dos exemplares que circulam por Havana – trocados até por mantimentos – foram editados em outros países de língua hispânica e levados à ilha por turistas. Lido hoje no mundo todo, Padura é amado em Cuba por jovens, sobretudo pelas criticas ao governo autoritário, pelos velhos, por traduzir para o mundo o que de belo se construiu na cultura revolucionária, e pelos adultos, pela criação de anti-herois que são quase sempre os encantadores tipos cubanos – homens e mulheres de instrução, inteligência e beleza invejáveis que precisam reinventar as vidas todos os dias diante das limitadíssimas condições de subsistência. “Ele poderia estar morando nos melhores lugares de Havana, mas não há o que tire o Padura dessa porcaria de bairro esquecido e pobre que obriga a gente a cruzar a cidade e voltar para o centro sem ganhar nada”, reclamou Orlando “El Professor” Gonzáles, o único de cinco taxistas que concordou ir até a Mantilla, pueblo afastado e ermo onde fica o puxado erguido pelo escritor mais importante da ilha sobre a casa dos pais.

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No sobrado sem campainha da Calzada de Manágua, o autor do best-seller “O Homem que Amava os Cachorros”, que acaba de ganhar o Prêmio Princesa das Astúruas, falou da sua preocupação coma velocidade e a forma com que se darão as mudanças nas relações com os Estados Unidos, sobre seu enorme esforço de pesquisa para escrever seu novo livro – “Hereges”, lançado no Brasil pela Boitempo Editorial – e de como a insistência em morar na casa que pertence a sua família há mais de três gerações é uma escolha que define sua vida, seu caráter e a sua (cada vez mais mundial e festejada) literatura.

O detetive Mario Conde, o personagem por meio do qual Padura levou ao mundo o retrato do submundo de Havana e da vida em Cuba depois da queda do Muro de Berlim, por exemplo, tem sua vida e gênese completamente ligada ao bairro afastado. “O Bar dos Desesperados é o bar aqui da esquina. A decadência urbana que Conde vê e fala é a decadência da Mantilla, que já foi um bairro auto-suficiente e hoje é um canto esquecido de Havana”, diz o escritor.

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CENÁRIO
A decadência de Cuba vista pela ótica do detetive Mario Conde
é a mais precisa descrição do submundo cubano depois
do fim da União Soviética que já saiu da ilha

O novo livro “Hereges” – que traz de volta o detetive Conde mais bêbado e decadente que nunca – é o primeiro romance do escritor depois de seu maior sucesso, a ficção em cima de pesquisa histórica da vida de Leon Trotsky. “Foram dois anos só de pesquisa para Hereges”, diz Padura, que teve de deixar o berço para realizar o projeto de romance. “Queria uma novela que saísse mais de Cuba, pois toda a narrativa que se circunscreve à ilha terá uma leitura política. Eu queria uma história que tivesse também um alcance filosófico.” Assim, o ex-jornalista passou “longos meses” no frio de Amsterdã pesquisando a vida de Rembrandt, um dos personagens do novo livro, criador na vida real do quadro que, na narrativa, costura as diferentes épocas e lugares pelos quais o livro se desenvolve.

“Fiquei impressionado como era fodido, mau-caráter e ao mesmo tempo genial. Rembrandt só era decente em relação aos amigos.” A obra do pintor holandês no livro é uma herança misteriosa de uma família judia que imigra para Cuba antes da Segunda Guerra Mundial.

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A saga dos Kaminsky trata da quebra de tradições que a tão desejada assimilação pode implicar. E é mais uma vez Padura falando da oposição entre os projetos coletivos e as liberdades individuais. E também, uma homenagem. “Daniel Kaminsky é meu grande amigo, o escritor Jaime Sarusky, que foi a pessoa mais cubana que conheci”, diz. Filho de comerciantes judeus estabelecidos em Cuba, Sarusky, que também era um jornalista entusiasta do projeto revolucionário, abandonou os negócios da família para trabalhar em veículos do governo socialista. “Só comia feijão, vivia de guayabera e amava rum e charutos”, fala Padura do amigo morto há dois anos. “A casa de Daniel Kaminsky que descrevo no livro é a casa em que minha mãe cresceu. A mesma casa no bairro judeu em que passei a infância; lugar em que minha tia morou até cair a última coluna e a última telha”, conta o escritor, apresentando a mãe, Alicia Padura, moradora da sala de baixo da residência.

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Enquanto acende mais um cigarro Popular e chama a mulher, Luicía, para tomar café passado com muito açúcar, Padura se despede desculpando-se pelos cachorros que entram e saem do terraço da sua infância enquanto a entrevista termina. “Não tem dono nem pedigree e nos divertem tanto”.

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