Na pequena e bem-cuidada rua de um bairro de classe média da periferia de Londres, todas as casas estão com suas lâmpadas apagadas. É madrugada e a única iluminação vem dos antigos lampiões. Como que flutuando no silêncio da noite, um senhor magro, de barba e cabelos prateados compridíssimos, saca de dentro das vestes longas uma espécie de isqueiro avantajado. Cada vez que o aciona, um lampião pisca e se apaga até a rua inteira permanecer na mais completa escuridão. O dono dos truques é Alvo Dumbledore. Ele parece ligeiramente aflito, mas não o suficiente para não notar o gato que o observa atentamente. “Eu sabia que a encontraria aqui”, dirigiu-se ao animal que, rapidamente, se transforma em gente, ou melhor, na professora McGonagall. Ela também se mostra ansiosa, pois uma encomenda importantíssima vai ser entregue no número 4 da rua dos Alfeneiros, endereço dos mais estúpidos dos trouxas, apelido com que bruxos como Dumbledore e McGonagall tratam os simples mortais. De repente, irrompendo dos céus, uma enorme motocicleta montada por um gigante aterrissa junto a eles. Rúbeo Hagrid, o grandalhão de barba e cabelos que quase o deixam sem expressão, tira do casaco um bebê cujo nome Harry Potter ainda renderá muita conversa, números, imagens e cifrões no ávido universo dos trouxas.

Afinal, o garoto órfão que foi se descobrir bruxo aos 11 anos agora protagoniza nas telas o que se anuncia como um dos maiores êxitos cinematográficos de todos os tempos. Harry Potter e a pedra filosofal (Harry Potter and the philosopher’s stone, Inglaterra/EUA, 2001), com estréia nacional na sexta-feira 23, vem amparado pelo fenômeno literário de uma saga que até o momento, com quatro volumes, foi traduzida para 42 idiomas e vendeu 110 milhões de exemplares ao redor do mundo – 800 mil no Brasil, um país onde ultrapassar a média dos 50 mil por livro é magia apenas para Paulo Coelho. Os executivos da Warner Bros. – que distribui o filme internacionalmente e pretende lançá-lo no mercado brasileiro rebocando 450 cópias, 150 delas dubladas – acreditam que ele irá superar o recorde de US$ 1,5 bilhão de Titanic. Francisco Feitosa, diretor-geral da empresa no Brasil, espera atingir cinco milhões de espectadores apenas nos dois primeiros meses, o que credenciaria a fita a ultrapassar outra marca da obra de James Cameron, cuja longa temporada tupiniquim levou 15 milhões de pessoas aos cinemas.

Munição para galgar números superlativos, Harry Potter e a pedra filosofal tem. Assim como o livro no qual foi baseado, o filme de US$ 125 milhões – há quem afirme US$ 150 milhões – é um festival de imaginação, beleza, inteligência e emoção em 2h32. Também vem preparado para agradar em cheio a crianças, adolescentes e adultos fãs do primeiro volume e dos seguintes, Harry Potter e a câmara secreta, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban e Harry Potter e o cálice de fogo. O quinto volume, Harry Potter e a ordem da fênix, previsto para ser lançado em julho de 2002, ainda está sendo escrito, mas já causa frisson. Por trás desta capacidade de construir ótimas histórias e de atrair até mesmo um público pouco afeito ao hábito da leitura encontra-se a escocesa Joanne Kathleen Rowling ou, como assina e prefere, apenas J.K. Rowling. Depois do sucesso, ela tornou-se uma figura pública misteriosa, totalmente avessa à exposição. Passa o tempo lapidando com extrema engenhosidade as suas tramas, vez ou outra interrompidas para autografar milhares de livros no seu exílio em Edimburgo, soltar rápidas declarações por escrito e contabilizar uma fortuna crescente no ritmo de US$ 75 mil por dia, feito que lhe garantiu – de acordo com a revista americana Forbes – o posto de terceiro escritor mais bem pago do mundo atualmente, atrás de Tom Clancy e Stephen King. Estes dígitos devem aumentar ainda mais após o contrato com a Warner, que lhe possibilita uma gorda participação, não revelada, nas bilheterias.

Café – Sem dúvida é a glória para uma profissional que escreveu grande parte do primeiro livro aboletada num café da capital da Escócia. Enquanto sorvia xícaras e xícaras, Rowling imaginou um enredo saboroso como há muito não se lia. É um sucesso que, inclusive, provocou o surgimento de outro herói semelhante e até detratores de peso. O cultuado escritor infanto-juvenil João Carlos Marinho, por exemplo, autor de deliciosos livros de aventuras cheias de mistério, é taxativo. “Não me simpatizo com histórias místicas e Harry Potter me pareceu uma mistura de Pokémon com Paulo Coelho. Sou do tempo do humanismo, quando Tristão de Athayde, perguntado sobre o que o homem precisava para ser considerado culto, respondeu: no mínimo, Racine.” Opinião a ser levada em conta. Mas por enquanto é Rowling quem comanda a festa literária materializada nas telas. Ela mesma vigiou as filmagens com olhos de dragão. A começar pela escolha precisa do elenco. É dela a sugestão do nome de Robbie Coltrane para interpretar o desastrado e afetuoso gigante Hagrid. Também sob sua supervisão, ganhou o papel principal o pequeno astro Daniel Radcliffe, 12 anos, selecionado entre os milhares chamados pelo produtor David Heyman e pelo diretor Chris Columbus, de Esqueceram de mim e Uma babá quase perfeita. Completam o trio de amigos de Potter o divertido Rupert Grint como Rony Weasley e Emma Watson na pele da sabichona Hermione Granger. Richard Harris encarna Alvo Dumbledore – o mestre de todos os bruxos e diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts – e Maggie Smith, a severa professora Minerva McGonagall.

Ao lado de Rony e Hermione, Potter descobre um mundo de aventuras e sensações completamente diferentes da vidinha medíocre e sofrida que levava dormindo no porão embaixo da escada da casa dos tios. Sua tristeza, no entanto, termina ao receber uma carta escrita com tinta verde-esmeralda comunicando que fora aceito em Hogwarts, onde todos os alunos, de linhagem bruxa ou trouxa, há muito sabiam de seus potenciais, menos Harry Potter. Quase todos os grandes momentos do livro foram preservados no filme, que contou com locações monumentais. O exterior de Hogwarts são as torres datadas do século XIV do castelo de Alnwick; os corredores da escola são as passagens da também milenar Catedral de Gloucester; e o Banco Gringotes – administrado por mal-humorados gnomos – é a Australian High Commission, situada no coração financeiro da capital inglesa.

Plataforma 9 3/4 – Hogwarts é um lugar inimaginável para os trouxas. Primeiro, só se chega ao local – cercado de fantásticas paisagens verdejantes – embarcando num trem especial que parte da plataforma 9 3/4, na estação londrina de King’s Cross. Lá dentro, os personagens dos quadros se movem, as escadas mudam de lugar e milhares de velas flutuam no ar iluminando o salão principal, cujo teto reproduz o céu do momento. Neste fascinante mundo de mistério e magia, Potter e seus amigos deparam-se com um imenso cachorro de três cabeças, convivem com dezenas de fantasmas, penam nas aulas de poções ou herbologia, se safam das maldades do colega Draco Malfoy (Tom Felton) e sofrem nas partidas de quadribol, uma das maiores causas da disputa entre as casas Grifinória, Sensorina, Corvinal e Lufa-Lufa, para onde cada aluno é levado depois que um chapéu seletor lhes dita o destino.

 

O jogo do quadribol é uma das cenas mais emocionantes de Harry Potter e a pedra filosofal. Trata-se de um esporte milenar e muito popular entre os bruxos. Mistura basquete e beisebol, mas é jogado a bordo de vassouras voadoras. A de Potter é uma Nimbus 2000 de última geração, presente da professora McGonagall, que, sem querer, descobriu seu talento para agarrador do pomo de ouro, uma pequena bola alada que determina a vitória do jogo para a equipe que a apanha. Por estas sacadas, livro e filme são atraentes para todos. Rowling soube muito bem agregar modernidade à trama mágica, sem deixá-la modernosa ou excessivamente inocente como os antigos contos de fada. Não há televisão, computadores ou videogames. E a maldade e a fantasia ora carregam visões coloridas, ora tons sombrios. Tão sombrios que chega a ser realmente assustadora a figura mítica do pior de todos os bruxos – Voldemort, cujo nome ninguém pronuncia – surgir na floresta entre brumas, sugando o sangue prateado de um unicórnio. Episódios do gênero fascinaram a atriz mineira Letícia Sabatella, a bela e subserviente Latifa da novela global das oito, O clone. “Li A pedra filosofal para a minha filha Clara, de oito anos. Eu adorei e ela ficou viciada. É um personagem encantador no seu processo de crescimento e de aprender a ter coragem.” Todos os trouxas hão de concordar.

Colaboraram: Celina Côrtes (RJ); Celso Fonseca e Ivan Claudio (SP)

Aventureiro do mal

Luiz Chagas

Como todo bom irlandês, o escritor Eoin Colfer, um tímido professor primário de 36 anos, tem um pezinho nos pântanos enfumaçados por onde pululam lendários seres de outras realidades. Ingredientes que poderiam tornar Artemis Fowl – o menino prodígio do crime (Record, 288 págs., R$ 25) aparentado com a série Harry Potter. Mas as semelhanças terminam aí. O mundo de Artemis é mais parecido com o nosso do que com o de Potter, apesar de seus habitantes serem fadas, gremlins, elfos, gnomos, duendes, além de sapos xingadores e centauros paranóicos, que se tornam invisíveis quando saem à superfície. Descendente de uma família de salteadores, o minigênio de 12 anos pouco age nesta primeira aventura. Não é nem mesmo mágico. Na realidade, Fowl é a interface entre o mundo imaginário e o real. E, ao contrário de J.K Rowling, Colfer depende da tecnologia. Começando pela internet, que é usada e abusada durante todo o livro.

Ao longo da história, Fowl descobre uma cópia de o Livro com os segredos do Povo das Fadas. Pretende se valer deles para roubar os potes de ouro guardados pelas tais criaturas. Só que terá de enfrentar a fada Holly, na verdade, uma supertreinada tenente do LEPrecon, a polícia dos subterrâneos. É deste estranhamento que vem a magia da escrita de Eoin Colfer. Com a experiência de cinco livros infanto-juvenis publicados, o escritor fala de absurdos com grande naturalidade e bom humor irresistível. Lançado em maio deste ano, Artemis Fowl já vendeu 700 mil exemplares em todo o mundo – 30 mil apenas no Brasil, onde ingressou no grupo dos dez mais vendidos, ao lado de Luis Fernando Verissimo, J. R. R. Tolkien (O senhor dos anéis) e…, claro, J.K. Rowling!

 

 

Por uma boa causa

Luiz Chagas

Assim que colocou o ponto final em Harry Potter e o cálice sagrado, J. K. Rowling foi contatada pela Comic Relief UK, uma ONG que se utiliza do humor para levantar fundos de auxílio às crianças carentes em todo o mundo. Assim, sob dois pseudônimos distintos, ela lançou Quadribol através dos séculos (Rocco, 64 págs., R$ 12), de Kennilworthy Whisp, e Animais fantásticos & onde habitam (Rocco, 64 págs., R$ 12), de Newt Scamander, nada menos que um dos livros utilizados em aula pelo próprio Harry Potter em Hogwarts. Como o livro de Whisp, um especialista no esporte, está entre os mais retirados da biblioteca pelos bruxos aprendizes, seu empréstimo para a edição fora do meio dos feiticeiros dependeu da interferência pessoal de Alvo Dumbledore. Já o tratado de Scamander – na verdade, Newton Ártemis Fido Scamander, um ex-aluno, hoje professor aposentado – é o próprio livro de Harry. Vem todo rabiscado e cheio de observações irreverentes sobre os professores. Claro que as justificativas para a publicação dos dois volumes não passam de mais um dos recursos imaginativos de Rowling. Mas, no mundo dos trouxas, a fantasia quer se transformar em realidade. A Comic Relief UK, de quem a editora Rocco adquiriu os direitos, pretende aplicar 80% do preço de capa nos seus projetos humanitários.