A beleza está nos detalhes, é comum dizer. Possivelmente, o horror também. Sobrevivente do Holocausto, Primo Levi sabia disso. A força do texto do escritor e químico italiano vem das minúcias substantivas. E da precisão obstinada, tal como um repórter obcecado por detalhes e números. A sua dor está ali. A dor da vítima, mesclada à perplexidade da testemunha ocular e objetividade do pesquisador. Ele expõe a dor com simplicidade, sem sobressaltos e com riqueza de descrições da miséria humana imposta pelos nazistas a milhões de judeus. Levi foi alguém que viu de perto a maior barbárie do século XX e só deixou de cumprir o dever moral de falar sobre ela no ano de 1987, aos 68 anos, quando decidiu tirar a própria vida.

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O escritor foi prisioneiro de Monowitz-Buna, em Auschwitz, de 26 fevereiro de 1944 a 27 de janeiro de 1945. Seu número era 174517. Levi começou seu último livro “Os Afogados e os Sobreviventes”, escrito em 1986, com esta frase: “A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz”. Talvez por isso, temendo cometer alguma imprecisão, ele não tenha incluído em sua obra maior, “É Isto um Homem” (1947), o caminho para a câmara de gás e a descrição dos fornos crematórios do campo de concentração de Auschwitz. Nenhuma vítima que percorreu esse corredor da morte saiu de lá viva. Porém, a cena foi descrita em detalhes num antigo documento, redigido por ele e pelo médico Leonardo de Benedetti em 1945, a pedido do Exército Vermelho russo, que os libertou de Auschwitz. “O relatório sobre a organização higiênico sanitária do campo de Monowitz (Auschwitz III)”, publicado nos fim dos anos 40 numa revista médica italiana e esquecido por anos, é o principal capítulo do livro “Assim foi Auschwitz” (Companhia das Letras, 275 págs), organizado por Fabio Levi e Domenico Scarpa. O texto foi considerado a fonte primária da obra de Levi sobre o Holocausto. Entre muitas informações descritas, o relatório enumera listas de patologias frequentes entre as vítimas de Auschwitz, hábitos e condições de higiene.

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A MORTE
"Quando todos entravam na câmara de gás, soltava-se um preparado
químico em forma de pó grosseiro. O rótulo especificava:
‘Para destruição de todos os parasitas animais’."

O trecho da descrição da morte na câmara de gás detalha o ambiente e a rotina.“As vítimas, introduzidas na primeira sala, recebiam a ordem de despir-se totalmente porque –diziam-lhes – precisavam tomar banho; para disfarçar ainda o mais sórdido engano, entregavam-lhes um pedaço de sabão e uma toalha.” Depois, prossegue o relato, os prisioneiros eram conduzidos à “sala das duchas”, um aposento com falso sistema de chuveiros nas paredes, onde avisos se destacavam: “Lavem-se, porque limpeza é saúde”. “Quando todos entravam na câmara de gás, pelas válvulas do teto soltava-se um preparado químico em forma de pó grosseiro, de cor cinza azulada, contido em latas cujo rótulo especificava “Zyklon B” – Para a destruição de todos os parasitas animais”. Segundo o relatório de Levi e Benedetti, era cianureto, que se evaporava a certa temperatura. “Em minutos, os trancafiados na câmara de gás morriam; as portas e janelas eram abertas, e os encarregados, usando máscaras, entravam em ação para transportar os cadáveres até os crematórios.”

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Tudo ou quase tudo já se falou sobre Auschwitz. O livro não muda a visão sobre o campo de concentração alemão, mas a expande nos mínimos detalhes, com uma narrativa possível apenas a quem viveu sua rotina. Além do documento-gênese entregue aos russos, “Assim foi Auschwitz” traz um compilado de depoimentos, questionários e testemunhos de Levi e Benedetti, organizados cronologicamente entre 1945 e 1986. Inédita até hoje, “A relação de Dr. Primo Levi”, de outubro de 1945, encontrada no arquivo hebraico Terracini de Turim, lista 30 nomes de pessoas desaparecidas com quem conviveu em Auschwitz.

Há também “A carta da filha de um fascista que pede a verdade”. Chocada com uma exposição sobre Auschwitz na Itália, a estudante escreve a Levi em 1959: “Fiquei assustada com o que vi e rezei a Deus que meu pai seja inocente desse massacre”. A carta foi publicada no jornal La Stampa, com a resposta do escritor: “Não, senhorita, não há como duvidar das imagens. Essas coisas realmente aconteceram, não séculos atrás, mas há 15 anos, no coração desta nossa Europa (…) Também espero que seu pai seja inocente, e é provável que o seja, pois na Itália as coisas se desenvolveram de outra maneira”.

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Até hoje a morte de Levi, em sua casa em Turim, é discutida. Há dúvidas sobre o suicídio, anos após sobreviver ao holocausto. Na época, o fantasma de Auschwitz foi aventado, mas Levi sofria de depressão, antes mesmo da guerra. Recuperava-se de um câncer e estava triste com a doença da mãe. Em um de seus últimos textos, de 1986, publicado na coletânea, Levi retoma a importância de contar e contar e contar. “Enquanto estivermos vivos, é nosso dever falar aos que não eram nascidos, para que saibam até onde se pode chegar.”

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