Na indústria do cinema é assim: se um filme deu certo, faça outra dezena igual a ele. Com o sucesso recente de Johnny & June, sobre o cantor americano Johnny Cash, uma onda de cinebiografias de roqueiros (as chamadas biopics) tomou conta de Hollywood e também dos estúdios ingleses. A mais recente e mais polêmica delas já está pronta e pode ser vista a partir do dia 19 na programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, depois de lotar salas no Festival do Rio: trata-se de I’m not there, que reúne os mitos e as lendas em torno do cantor Bob Dylan. Mas a lista de produções do gênero é imensa. Além de Control, que acompanha a trajetória de Ian Curtis, líder da banda inglesa de pós-punk Joy Division, já se encontra em produção Gospel according to Janis, no qual um repórter da revista Rolling Stone acompanha uma turnê da cantora Janis Joplin, morta de overdose em 1970. Zooey Deschanel, de Ponte para Terabitia, vai viver Janis. Outra biografia em andamento é See me, feel me: Keith Moon naked for your pleasure, com o comediante Mike Myers no papel do baterista do The Who, também morto de overdose. O elenco de retratados inclui ainda Freddie Mercury (do Queen), Iggy Pop, Kurt Cobain (do Nirvana), Debbie Harry, Jimi Hendrix, Joey Ramone e Bob Marley, entre outros.

O fenômeno já foi detectado pelos homens da indústria, que acreditam que a atual febre tem a ver com o crescimento dos DVDs musicais. Eles argumentam que esse tipo de filme, mesmo se for mal de bilheteria, vai ter seu público garantido entre os amantes da música, sempre dispostos a aumentar suas coleções. Outro dado novo é que esses artistas surgidos nos anos 60 começam a ser descobertos pelas novas gerações e têm uma trajetória que em si já é um bom enredo. Sem falar da trilha sonora. “Percebi que estava na hora de fazer um filme sobre Jimi Hendrix quando vi um pôster dele no quarto de minha filha de 15 anos”, disse a produtora Elizabeth Karlsen, parceira do diretor Paul Greengrass na biografia do guitarrista morto em 1970.

Como toda produção em série, essa já anuncia altos e baixos. Zooey Deschanel, por exemplo, foi uma péssima escolha para interpretar Janis Joplin, um papel disputado por Renée Zellwegger e Scarlett Johansson. Menos dificuldade teve o diretor Todd Haynes na seleção do ator que viveria Bob Dylan em I’m not there. Ele não selecionou um, mas seis atores para viver o autor de clássicos como Like a rolling stone e Blowin’ in the wind: o garoto Marcus Carl Franklin, Christian Bale, Heath Ledger, Richard Gere, Ben Whishaw e Cate Blanchett. Sim, Cate Blanchett, a loira que ganhou o Oscar com O aviador. Cate interpreta Bob Dylan nos anos 60, aquele apelidado de Judas, que duelava com a imprensa depois de eletrificar a música folk e se recusar a ser o porta- voz de uma geração. Sempre de preto, com o cabelo desgrenhado e escondida por trás de óculos escuros, ela exibe uma performance admirável, que já lhe deu o prêmio de melhor atriz em Veneza. Para encarnar o cantor, a atriz usou uma meia dentro da calça, simulando o órgão sexual masculino. “Ela me ajudou a andar como um homem.”

Outra ousadia de Haynes foi escalar um ator negro para representar o Dylan da juventude, quando ele era vidrado nas “union songs” do cantor folk Woody Guthrie. O personagem, claro, chamase Woody, e desfila com um violão em cuja capa se lê o mesmo slogan politizado usado por Guthrie em seu instrumento: “máquina de matar fascistas”. Cada um dos seis atores encarna o cantor em uma de suas fases, filmadas em estilos diferentes, inspirados em diretores como Fellini, Godard ou Peckinpah. Haynes explica que o procedimento tem a ver com a apropriação que o cantor fazia de músicas tradicionais e do folclore americano. Apesar de ter sido aprovado pelo retratado (ele gostou tanto do projeto que liberou pela primeira vez suas canções), nenhum dos personagens traz seu nome. Bale encarrega-se da fase folk e cristã; Ledger, do momento pop star; Gere, de seu isolamento; e Whishaw, numa mistura com o poeta francês Arthur Rimbaud, de seu lado mais misterioso. “Quis explodir a idéia de que alguém pode ser retratado em apenas uma de suas facetas”, disse Haynes, que fez no cinema o correspondente ao cubismo na pintura.