Na segunda metade do século XVIII, o engenheiro militar português José Joaquim da Rocha (1740 – 1804) embrenhou- se pelo interior do Brasil em uma missão secreta. Ele percorreu diversas extensões de terras entre os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro mapeando vilas, igrejas e minerações de ouro e pedras preciosas. Seu trabalho era traçar, em sigilo para a Coroa Portuguesa, o que viria a ser conhecido como Estrada Real – o trajeto que as remessas de ouro e diamante faziam das montanhas mineiras até Parati (RJ), antes de ser embarcado para o além-mar. O segredo da operação de Rocha tinha motivo de ser: a Corte queria rígido controle sobre as riquezas minerais para coibir o contrabando das preciosidades. Agora, os caminhos traçados pelo sargento- mor serão estudados novamente. É com base neles que a Estrada Real deverá ganhar o título de Paisagem Cultural da Humanidade. Se a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) conceder o título, ela será a primeira paisagem brasileira a merecer tal honraria. Fará parte de um seleto grupo de lugares espalhados por 25 países, do qual faz parte o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha.

O Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) dará chancela, na quarta-feira 17, à candidatura brasileira de entrar na chamada “Lista Tentativa” da Unesco. Nessa lista, os países reivindicam a inclusão de rotas e sítios históricos e de conjuntos arquitetônicos seculares ao patrimônio mundial protegido pelo organismo internacional. “Estamos esperançosos porque ultimamente a Unesco tem optado por reconhecer com o título aspectos não concretos, como rotas culturais”, diz Eberhard Hans Aichinger, presidente do conselho do Instituto Estrada Real, ONG ligada à Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg).

A história da Estrada Real remete ao século XVII, quando portugueses e mamelucos da Vila de São Paulo montaram expedições pelo interior do Brasil, as bandeiras, em busca de riquezas. Com a descoberta de ouro fez-se entre as terras paulistas, mineiras e fluminenses um caminho em forma de “Y” invertido que se constituiu na Estrada. Cumprindo ordens da Coroa Portuguesa, as picadas que uniam a cidade de Parati a Ouro Preto (MG), conhecida como Caminho Velho, foram alteradas em 1698, diante da dificuldade de se vencer as montanhas enlameadas nos períodos chuvosos. Abriu-se, então, um outro itinerário, o Caminho Novo, que partia do porto do Rio de Janeiro. Quando os bandeirantes se depararam com jazidas de diamante no Arraial do Tijuco, hoje Diamantina, surgiu o Caminho do Diamante. A união das três trilhas gerou o eixo central da Estrada Real, uma rota de 1.726 quilômetros de extensão, que atravessa 188 municípios.

Ao desbravar essas rotas, o engenheiro José Joaquim da Rocha produziu em 1778 o primeiro mapa detalhado da Capitania de Minas Gerais. Com esse registro, pesquisadores do Instituto Estrada Real comprovaram cientificamente a existência do “Caminho Real”, uma das exigências da Unesco para elevar o percurso à condição de Paisagem Cultural da Humanidade. Durante cinco meses, geógrafos, historiadores e cartógrafos debruçaram-se sobre o mapa de Rocha e transportaram as referências para a atualidade utilizando-se de um moderno recurso digital, o geoprocessamento. Com o uso de um sistema de GPS, de imagens atuais de satélite fornecidas pela Agência Espacial Americana e registros de localidades e cursos d’água feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os técnicos confirmaram os traçados no documento de 1778. Os pesquisadores conseguiram, então, criar um modelo digital do terreno e desenvolveram um vídeo em terceira dimensão da Estrada Real. “Conseguimos puxar o mapa para o presente sem deformar suas informações”, comemora o geógrafo Glauco Umbelino.

Com o geoprocessamento, foi possível demonstrar que o traçado atual da Estrada Real é praticamente o mesmo do tempo dos bandeirantes. Além disso, os técnicos identificaram mais de 50 km de trechos de calçadas originais, pontes de pedra e sistemas de drenagem de água, com muros de contenção preservados. Ao todo, a rota guarda um enorme acervo do período do apogeu do ouro e dos diamantes em construções históricas em 72 municípios. Algumas dessas cidades já foram tombadas como Patrimônio Cultural da Humanidade. Caso de Diamantina, Ouro Preto e do Santuário de Bom Jesus do Matozinhos, em Congonhas (MG) – com os profetas de Aleijadinho. “A Estrada foi um dos vértices do triângulo comercial entre a Europa, a América Portuguesa e a África”, entende Américo Antunes, coordenador do projeto submetido ao Iphan. No próximo dia 25, ele apresentará em Lisboa o plano de reconstituição do mapa de 1778. “É um pontapé para que consigamos o reconhecimento pelas Nações Unidas de nosso patrimônio”, avalia Antunes.