Carapirá é o nome de uma ave que costuma seguir as embarcações, alimentado-se dos restos atirados na água. É também como se autodenominam os catadores do lixão do entorno de Macapá, a capital do Amapá. Aos dez anos, a pequena Zivanete de Souza foi uma carapirá até há pouco tempo. Como outras 135 crianças da cidade, Zivanete passava boa parte do dia revolvendo lixo atrás de materiais para vender, em especial alumínio, vidro e cobre. Exercia a atividade insalubre ao lado de sua mãe adotiva, Maria de Lourdes de Souza, 70 anos. “Juntas, dava para fazer uns R$ 20 por mês”, lembra Maria de Lourdes. “Eu continuo catando algum lixozinho, mas tivemos uma melhora grande depois que Zivanete começou a estudar.” Há dez meses a garota passou a receber R$ 68 mensais para frequentar uma escola, experiência que ela jamais tivera na vida. “Já sei escrever muitas palavras e estou começando a ler”, comemora. Agora o lixão é um lugar que ela só vê de passagem.

Doações – A transformação de Zivanete e seus 135 colegas em ex-carapirás ocorreu na esteira do programa bolsa-escola, que é quase uma unanimidade no País. Nas últimas eleições, esteve no discurso de nove entre cada dez candidatos a prefeito, de todos os partidos. Projetado nacionalmente em 1995, durante o governo Cristovam Buarque (PT) no Distrito Federal, o programa prevê uma ajuda financeira a famílias de baixa renda que matriculem e mantenham na escola suas crianças e adolescentes de sete a 14 anos.

De forma descentralizada e financiado por diferentes fontes, o projeto bolsa-escola está espalhado pelo Brasil. Seu custeio também tem fontes distintas. No caso dos ex-carapirás, 56 deles estão sendo financiados pela organização não-governamental Missão Criança, com sede em Brasília, os outros 79 pelo governo do Amapá. No total, o Estado fornece 3.352 bolsas do gênero. Com doações recebidas de particulares e da iniciativa privada, a Missão Criança atende outras duas mil crianças e fornece assessoria a projetos que beneficiam 54 mil estudantes.

Um estudo recém-concluído pelo Banco Mundial considera que, entre todos os projetos sociais já implantados no Brasil, o da bolsa-escola é o que tem maiores possibilidades de reduzir a pobreza. Falta, de acordo com o trabalho, um investimento maciço do governo federal, em particular nas cidades com menores recursos. “Os municípios mais pobres são os que mais precisam dos programas, mas são incapazes de financiá-los”, diz a pesquisa. Embora considere a recomendação do Banco Mundial “absolutamente procedente”, a responsável pelo programa federal, Wanda Engel, acredita que o governo FHC está fazendo a sua parte.

Impacto – Secretária de Assistência Social do Ministério da Previdência, Wanda lembra que existem 2,9 milhões de crianças de sete a 14 anos trabalhando no País. “Até 2001 nossa meta é atingir os 865 mil meninos e meninas envolvidos em trabalhos penosos”, explica Wanda. Os restantes seriam atendidos até 2002. Por enquanto, o governo FHC fornece bolsa-escola a 269 mil crianças, menos de 10% do total. Na área rural, elas recebem R$ 25 mensais para frequentar a escola. Na área urbana, o valor é de R$ 40.

André Dusek
Maria dos Milagres e seus três filhos gastam a maior parte dos recursos com alimentos

Como as últimas estatísticas detectaram um crescimento da pobreza no País, o trabalho de crianças para contribuir com a renda familiar pode aumentar. Pesquisa realizada pelo Ipea, um instituto vinculado ao Ministério do Planejamento, acaba de constatar que o número de pobres no Brasil passou de 33,4% para 34,9% entre 1998 e 1999, ou seja, mais 3,1 milhões de brasileiros deixaram de ter renda suficiente para seu próprio sustento. Desde 1996, o porcentual de pobres não aumentava no País.

“Não acreditamos que, sozinho, o bolsa-escola seja capaz de romper o ciclo da miséria, mas seu impacto se potencializa se houver uma melhoria imediata da escola pública e a extensão da jornada diária para integral”, afirma Caio Magri, da Fundação Abrinq, que investe na erradicação do trabalho infantil. “Na esfera federal existem recursos para universalizar o bolsa-escola, mas faltam vontade política e decisão estratégica”, avalia Magri. A secretária Wanda destaca que a implantação de um programa do gênero não é simples, embora o governo FHC esteja encerrando seu sexto ano. “Não dá para sair distribuindo dinheiro por aí”, diz.

Contramão – Inaugurado em 1996, o bolsa-escola da Prefeitura de Belém (PA) já atendeu mais de 27 mil crianças e adolescentes. Com uma vantagem: para reforçar o programa, foram criados 48 projetos de apoio, entre eles um de qualificação profissional dos adultos da família. “Através dessa rede de serviços, conseguimos afastar das ruas 1.700 crianças”, conta Sandra Cruz, que coordena o programa de Belém.

Copiado em todo o País e amplamente divulgado no Exterior, o bolsa-escola não conta, porém, com o apoio de Joaquim Roriz (PMDB), o governador do Distrito Federal. Em vez de reconhecer o êxito de seu antecessor na área educacional, Roriz preferiu andar na contramão. Embora continue pagando o benefício para as mais de 25 mil famílias cadastradas no governo Cristovam, ele não concedeu mais nenhuma bolsa. Adotou outro programa, o “Sucesso no Aprender”, que todo semestre oferece às crianças selecionadas um kit com mochila, cadernos, lápis, borracha, lápis de cor, cola, régua, uniforme, calçados e meias.

A principal crítica de Roriz ao bolsa-escola é o fato de as famílias usarem os recursos para comprar, antes de mais nada, alimentos. Mãe solteira de três filhos em idade escolar, Maria dos Milagres Almeida está desempregada e assume que sua família sobrevive do bolsa-escola que recebe desde 1995. “Se eu fosse comprar só material escolar, a gente ia morrer de fome”, diz. Além de alimentados, os filhos de Maria dos Milagres são assíduos na escola e não engrossam os tristes índices de trabalho infantil no Brasil. É justamente esse o objetivo do programa.