O Brasil ganhou ouro em Sydney. Não uma, mas quatro medalhas douradas, até a quinta-feira 26. Elas vieram quase um mês depois da partida de Torben Grael, Robert Scheidt, Guga, Rodrigo Pessoa e de todos os outros atletas olímpicos. O judoca Antônio Tenório, a velocista Ádria Santos e a arremessadora de peso e de disco Roseane Ferreira já chegaram ao alto do pódio, nos Jogos Paraolímpicos de Sydney, iniciados na quarta-feira 18. Com seis pratas e seis bronzes, o Brasil de Pessoa, Guga e Grael terminou os Jogos Olímpicos de setembro num modesto 52º lugar, atrás de Moçambique, Indonésia e Colômbia. Os paraolímpicos, por conta dos feitos desses heróis da resistência, chegam à reta final da competição com 13 medalhas (quatro ouros, sete pratas e dois bronzes), num honroso 24º lugar, à frente de Cuba, Suécia, Ucrânia e Portugal. Não será surpresa se vierem novos pódios. Nos 200 metros rasos para cegos totais, Ádria tem tudo para conquistar sua segunda prata (ela chegou em segundo nos 400 metros) ou até um novo ouro, após a vitória nos 100 metros rasos na segunda-feira 23.

A capacidade desses atletas para driblar dificuldades impressiona. São heróis diários da resistência. A mineira Ádria, 26 anos, filha de pedreiro e costureira, sete irmãos, uma filha de dez anos, é uma veterana. Tinha apenas 14 anos quando ganhou suas duas primeiras pratas, nos 100 e 400 metros rasos, em Seul. Ainda enxergava alguma coisa e pertencia à categoria T12, de atletas com 5% a 15% de visão. “A abertura foi linda. Tinha crianças vestidas com roupas típicas do país”, lembra. De Barcelona, em 1992, trouxe o ouro nos 100 metros rasos e a imagem de uma pirâmide de flores, decorada com ursinhos e as cinco argolas olímpicas. “Fiz uma foto. Tenho guardada até hoje”, disse Ádria, de Sydney, a ISTOÉ.

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Dois anos depois, os efeitos da retinose pigmentar se agravaram e veio a escuridão. “Foi duro. Tinha vergonha até de andar com aquela bengala de alumínio para tatear o caminho”, revela. Levada à categoria T11, dos cegos totais, Ádria passou a competir com a ajuda do guia Gérson Knittel, também atleta. É uma relação profissional bonita. O guia corre ao lado ou atrás do atleta. Os dois são ligados por uma corda, amarrada ao dedo. Ele pode incentivar, instruir e até direcionar o corpo do competidor na raia. Mas se passar à frente do corredor e puxá-lo, a desclassificação é certa.

A participação é fugaz, mas envolve muita sensibilidade. “Nunca digo a posição dela durante a prova”, conta Knittel. “Se, por exemplo, ela não estiver entre as primeiras, poderá desanimar e perder a chance de um pódio”, completa. Ele diz coisas imprecisas como “vai, está ficando bom” ou “aperta o ritmo, está melhorando”. Nos Jogos de Atlanta 1996, Ádria, com o auxílio precioso de Knittel, ganhou prata nos 100, 200 e 400 metros rasos. Em Sydney, bateu o recorde mundial na semifinal dos 100 metros (12s34), levou o ouro na final com 12s46 e, dois dias depois, garantiu a prata nos 400 metros rasos, com 59s46. Sua eterna rival, a espanhola Purificación Santamarta, prata nos 100 metros, desta vez levou o ouro. Puri, como é chamada, é guiada pelo marido. Por falta de atletas classificados, Ádria e Puri, outra cega total, disputaram a final dos 100 metros com corredores com 5% a 15% de visão, mas a vantagem destes não produziu resultado.

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Rosinha venceu nos arremessos de peso e disco

A ex-empregada doméstica pernambucana Roseane Ferreira dos Santos, 29, a Rosinha, que teve uma perna amputada há dez anos, é outra admirável revelação. Antes de embarcar, deixou dois pedidos em casa, dentro de uma Bíblia. Sonhava arremessar o peso a pelo menos nove metros de distância e o disco a mais de 30 metros. Na segunda-feira 23, lançou o peso na marca dos nove metros. Rosinha levou um ouro e tornou-se a primeira mulher com deficiência física, na categoria, a fazer um lançamento com essa distância. Não bastasse isso, na manhã de quinta-feira 26, bateu por três vezes o recorde mundial do arremesso do disco. No último lançamento, marcou 31m58, mais de um metro e meio além do pedido aos céus, e pulverizou o recorde mundial de 30m08, batido minutos antes pela tunisiana Khadija Jaballah. O segundo ouro estava garantido com sobra.

Lição de vida – A vida de Rosinha mudou quando um caminhão, guiado por um bêbado, atingiu a sua perna esquerda. A saída foi a amputação. Deprimida, ficou por dois anos sem passar do portão de casa. Na coletiva de imprensa, surpreendeu com frases fortes e bem-humoradas: “A melhor coisa que me aconteceu foi ter perdido esta perna. Olha só: estou em Sydney, com dois ouros no peito.” Adria e Rosinha seguiram os passos do judoca cego Antônio Tenório. Ele ganhou o ouro na quinta-feira 19 ao aplicar um belíssimo ippon (equivalente ao nocaute no boxe) no americano Brett Lewis.

Esse tipo de competição costuma produzir recordes e lições de vida. O corredor cego Henry Wanyoiked, do Quênia, venceu a prova dos 5.000 metros mas não conseguiu bater o recorde mundial, o que era tido como certo. No terço final da prova, seu guia, John Kyalo, passou mal e o forçou a diminuir o ritmo. Depois da frustração e da medalha, Wanyoiked acariciou o amigo com uma declaração desconcertante: “Fiquei chateado, mas tive pena do John. Ele também desejava o recorde. É isso: somos todos humanos.