Cenas grotescas no Programa do Ratinho, do SBT, há muito deixaram de ser novidade. Na segunda-feira 23, no entanto, todos os limites do horror foram ultrapassados. Durante sete minutos, os espectadores foram literalmente torturados, com a exibição de cenas repugnantes de um adulto torturando uma menina de três anos, a ponto de obrigá-la a comer as próprias fezes. O Ministério da Justiça, o Ministério Público de São Paulo, o Congresso Nacional, personalidades e entidades públicas espernearam contra a “bomba jornalística” do SBT. Ratinho se defendeu alegando que seu objetivo era chocar a sociedade para combater a idéia de redução de penas no sistema jurídico nacional. Classificou ainda sua atitude como uma “função social”. Além da tal missão, Ratinho cumpriu uma outra tarefa, esta para a emissora que paga seu salário: elevou a audiência do programa de 14 para 21 pontos com as imagens chocantes.

As cenas certamente foram vistas por milhares de crianças, apesar do aviso do próprio programa de que exibiria imagens impróprias. Nelas, a menina é pisoteada e sufocada por Marcelo Borelli, considerado o líder do sequestro do avião da Vasp em 16 de setembro. Borelli teria torturado a menina, filha de sua própria namorada, para se vingar de um ex-cúmplice, pai da criança. Diante da repercussão negativa, o SBT anunciou, na segunda-feira, que não importunaria mais seus espectadores com outras cenas da fita. Entre os atos de tortura, a fita teria imagens da criança tomando choques em uma bacia de água.

Vidal Cavalcante/AP/Reprodução
Brenda (ao lado) morreu depois de várias fraturas: a mãe Kátia Coelho já depôs na polícia

Três dias antes do show bizarro de Ratinho, o Brasil levara mais um susto com a repetição de um fenômeno que desafia a sociedade moderna e o progresso das relações humanas: a violência doméstica contra as crianças. Em São Paulo, a menina Brenda, de apenas nove meses, morreu de traumatismo craniano. O crime foi parar na Delegacia da Mulher da capital paulista. No corpo de Brenda foram encontrados sinais de pancada na cabeça e fraturas nos braços, pernas e costelas.

Internação – O País só tomou conhecimento da tragédia do bebê paulista porque o pediatra João Márcio Mainenti, último a cuidar de Brenda, procurou a polícia. Brenda já tinha sido internada sete vezes em cinco hospitais diferentes sem que ninguém se dispusesse a denunciar a situação para evitar a tragédia final. As pessoas com quem Brenda mantinha contato eram sua mãe Kátia Carvalho Coelho, a babá Elizabete Felipe de Melo, a advogada Maria Isabel Nunes, que divide o apartamento com Kátia, e Márcio Mariano, ex-marido da mãe, que não era o pai da menina.

Brenda e a menina torturada integram uma das muitas estatísticas tristes quando se fala da infância brasileira. Um estudo da Abrapia (Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência) feito no Rio de Janeiro e usado como referência para o Unicef (o fundo da ONU para a criança) indica que, entre as 811 crianças e adolescentes vítimas de agressões denunciadas à entidade só no ano passado, 64% tinham menos de dez anos de idade.

Apesar de lidar todos os dias com denúncias de violência contra crianças, a superintendente da Abrapia, Neila Negrelos, se espantou com a apelação de Ratinho. “Se quisesse combater o crime, ele deveria encaminhar a fita às autoridades, nunca mostrar aquilo. É inadequado para uma criança assistir, pode causar um trauma muito grande”, condena a especialista, ressaltando que é cada vez mais comum os pediatras receberem crianças com sintomas de angústia, ansiedade e perda de sono causadas pela violência que vêem na televisão.

A tortura exibida por Ratinho e a morte de Brenda não são fenômenos tão incomuns como se possa pensar. Em seu programa SOS Criança, a Abrapia já recebeu denúncias de arrepiar qualquer pessoa. “Há casos de crianças jogadas na parede e mortas por traumatismo craniano, queimadas com óleo fervendo, submetidas a sessões de choques na boca e na vagina, além de colher quente na vagina e banho de água fervendo”, diz Neila Negreiros.

Caso oculto – Segundo a especialista da Abrapia, a violência doméstica contra a criança ocorre em todas as classes sociais, sem distinção. “A diferença é que, quando ocorre em classes mais abastadas, há mais privacidade e o caso é oculto. Um pediatra dificilmente denuncia o pai que paga a consulta”, afirma. A negligência (abandono), considerada uma agressão pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, representou 39,8% dos casos estudados pela Abrapia no ano passado no Rio. A violência física, 26,8%. Os demais casos se dividem entre violência psicológica (26,2%) e abuso sexual (7,2%). As mães foram os agressores mais citados nas denúncias, com 43,3% dos casos, bem mais do que os pais (33,9%).

Capítulo à parte da rotina das crianças agredidas no País, o abuso sexual desafia as autoridades e os psiquiatras. Praticamente todos os estudos indicam que a maioria desses crimes é praticada por integrantes da família ou pessoas próximas da vítima. “É um caso raro atendermos uma criança vítima de abuso sexual que não tenha sido atacada por parentes ou pessoas próximas. Agressores estranhos à família não chegam a 30%”, diz a pediatra Ana Lúcia Ferreira, do hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na quarta-feira 25, pouco depois de ter atendido duas crianças vítimas de abuso sexual. Para ela, a solução encontrada por Ratinho para combater a violência contra a criança foi a pior possível. “Muita gente pode ver isso e começar a achar que é algo natural, que acontece, relativizando o resto das atrocidades. O único caminho é denunciar ao Conselho Tutelar ou à polícia”, conclui a pediatra.

Cenas grotescas no Programa do Ratinho, do SBT, há muito deixaram de ser novidade. Na segunda-feira 23, no entanto, todos os limites do horror foram ultrapassados. Durante sete minutos, os espectadores foram literalmente torturados, com a exibição de cenas repugnantes de um adulto torturando uma menina de três anos, a ponto de obrigá-la a comer as próprias fezes. O Ministério da Justiça, o Ministério Público de São Paulo, o Congresso Nacional, personalidades e entidades públicas espernearam contra a “bomba jornalística” do SBT. Ratinho se defendeu alegando que seu objetivo era chocar a sociedade para combater a idéia de redução de penas no sistema jurídico nacional. Classificou ainda sua atitude como uma “função social”. Além da tal missão, Ratinho cumpriu uma outra tarefa, esta para a emissora que paga seu salário: elevou a audiência do programa de 14 para 21 pontos com as imagens chocantes.

As cenas certamente foram vistas por milhares de crianças, apesar do aviso do próprio programa de que exibiria imagens impróprias. Nelas, a menina é pisoteada e sufocada por Marcelo Borelli, considerado o líder do sequestro do avião da Vasp em 16 de setembro. Borelli teria torturado a menina, filha de sua própria namorada, para se vingar de um ex-cúmplice, pai da criança. Diante da repercussão negativa, o SBT anunciou, na segunda-feira, que não importunaria mais seus espectadores com outras cenas da fita. Entre os atos de tortura, a fita teria imagens da criança tomando choques em uma bacia de água.

Vidal Cavalcante/AP/Reprodução
Brenda (ao lado) morreu depois de várias fraturas: a mãe Kátia Coelho já depôs na polícia

Três dias antes do show bizarro de Ratinho, o Brasil levara mais um susto com a repetição de um fenômeno que desafia a sociedade moderna e o progresso das relações humanas: a violência doméstica contra as crianças. Em São Paulo, a menina Brenda, de apenas nove meses, morreu de traumatismo craniano. O crime foi parar na Delegacia da Mulher da capital paulista. No corpo de Brenda foram encontrados sinais de pancada na cabeça e fraturas nos braços, pernas e costelas.

Internação – O País só tomou conhecimento da tragédia do bebê paulista porque o pediatra João Márcio Mainenti, último a cuidar de Brenda, procurou a polícia. Brenda já tinha sido internada sete vezes em cinco hospitais diferentes sem que ninguém se dispusesse a denunciar a situação para evitar a tragédia final. As pessoas com quem Brenda mantinha contato eram sua mãe Kátia Carvalho Coelho, a babá Elizabete Felipe de Melo, a advogada Maria Isabel Nunes, que divide o apartamento com Kátia, e Márcio Mariano, ex-marido da mãe, que não era o pai da menina.

Brenda e a menina torturada integram uma das muitas estatísticas tristes quando se fala da infância brasileira. Um estudo da Abrapia (Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência) feito no Rio de Janeiro e usado como referência para o Unicef (o fundo da ONU para a criança) indica que, entre as 811 crianças e adolescentes vítimas de agressões denunciadas à entidade só no ano passado, 64% tinham menos de dez anos de idade.

Apesar de lidar todos os dias com denúncias de violência contra crianças, a superintendente da Abrapia, Neila Negrelos, se espantou com a apelação de Ratinho. “Se quisesse combater o crime, ele deveria encaminhar a fita às autoridades, nunca mostrar aquilo. É inadequado para uma criança assistir, pode causar um trauma muito grande”, condena a especialista, ressaltando que é cada vez mais comum os pediatras receberem crianças com sintomas de angústia, ansiedade e perda de sono causadas pela violência que vêem na televisão.

A tortura exibida por Ratinho e a morte de Brenda não são fenômenos tão incomuns como se possa pensar. Em seu programa SOS Criança, a Abrapia já recebeu denúncias de arrepiar qualquer pessoa. “Há casos de crianças jogadas na parede e mortas por traumatismo craniano, queimadas com óleo fervendo, submetidas a sessões de choques na boca e na vagina, além de colher quente na vagina e banho de água fervendo”, diz Neila Negreiros.

Caso oculto – Segundo a especialista da Abrapia, a violência doméstica contra a criança ocorre em todas as classes sociais, sem distinção. “A diferença é que, quando ocorre em classes mais abastadas, há mais privacidade e o caso é oculto. Um pediatra dificilmente denuncia o pai que paga a consulta”, afirma. A negligência (abandono), considerada uma agressão pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, representou 39,8% dos casos estudados pela Abrapia no ano passado no Rio. A violência física, 26,8%. Os demais casos se dividem entre violência psicológica (26,2%) e abuso sexual (7,2%). As mães foram os agressores mais citados nas denúncias, com 43,3% dos casos, bem mais do que os pais (33,9%).

Capítulo à parte da rotina das crianças agredidas no País, o abuso sexual desafia as autoridades e os psiquiatras. Praticamente todos os estudos indicam que a maioria desses crimes é praticada por integrantes da família ou pessoas próximas da vítima. “É um caso raro atendermos uma criança vítima de abuso sexual que não tenha sido atacada por parentes ou pessoas próximas. Agressores estranhos à família não chegam a 30%”, diz a pediatra Ana Lúcia Ferreira, do hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na quarta-feira 25, pouco depois de ter atendido duas crianças vítimas de abuso sexual. Para ela, a solução encontrada por Ratinho para combater a violência contra a criança foi a pior possível. “Muita gente pode ver isso e começar a achar que é algo natural, que acontece, relativizando o resto das atrocidades. O único caminho é denunciar ao Conselho Tutelar ou à polícia”, conclui a pediatra.