O juiz espanhol José Francisco Querol Lombardero beijava sua mulher Pepita todas as manhãs antes de deixar o número 65 da sua casa no bairro madrilenho Torrelaguna rumo ao supremo tribunal. Com Pepita, o juiz e almirante teve quatro filhos. Faltava um mês para completar 70 anos e se aposentar. Na manhã da segunda-feira 30, ele cumpriu o ritual mais uma vez. Querol entrou em seu Renault verde oficial, com o motorista Armando Medina e o segurança Jesús Escudero. Quando o carro passou pelo cruzamento entre as ruas Torrelaguna e a avenida de Badajoz, os três passageiros foram jogados para o ar por uma bola de fogo provocada por uma violenta explosão de um carro-bomba ali estacionado. O juiz, o motorista e o segurança morreram na hora. O carro-bomba, acionado por controle remoto e com 30 quilos de dinamite, explodiu às 9h12 em frente a um prédio de apartamento de 16 andares, um ponto de ônibus e uma escola. O ônibus 53, que estava em sua penúltima parada, ardeu em chamas. A cena foi descrita por uma testemunha como “uma grande explosão, seguida de rolos de fumaça e centenas de pessoas correndo em pânico”. O estrondo foi tão alto que a mulher Pepita e sua filha ouviram de casa a explosão.

Os 66 feridos foram atendidos na rua de maneira improvisada ou levados para hospitais do bairro. Entre eles, estava o motorista do ônibus, que sofreu traumatismo craniano. Uma menina de 11 anos teve fratura exposta em uma das pernas. A carnificina poderia ter sido pior. Minutos antes do atentado, duas mil crianças tinham acabado de entrar nas quatro escolas do bairro. A polícia montou a chamada “Operação Jaula”, um plano de busca a outras possíveis bombas. Durante quatro horas, fecharam as ruas, impedindo os moradores de deixar suas casas. Mais de 400 lojas foram atingidas pela explosão. Segundo as autoridades espanholas, o ataque foi responsabilidade da organização separatista ETA (Pátria Basca e Liberdade). O juiz foi a 19ª vítima fatal nos últimos 14 meses, desde que o grupo terrorista basco rompeu uma trégua com o governo. Em quatro décadas de luta pela independência do País Basco da Espanha, apenas em Madri a ETA já colocou 25 carros-bomba, matando 51 pessoas e deixando mais de 200 feridas. Na quarta-feira 1º, outro atentado com carro-bomba deixou dois feridos em Barcelona.

Reuters
Abaixo o extremismo
Espanhóis protestam em Madri contra as ações do grupo ETA

A indignação contra a ETA espalhou-se por toda a Espanha. Milhares de pessoas foram às ruas durante a terça-feira 31 em Madri e outras cidades em manifestações de protesto contra o sanguinário terrorismo do grupo separatista. “Nem 40 milhões de balas vão acabar com a nossa dignidade”, dizia um cartaz em Madri. O primeiro-ministro José María Aznar, do Partido Popular (PP), que escapou de um atentado do ETA em 1995, fez um duro discurso contra o grupo terrorista. “Está claro que ninguém atingirá nenhum objetivo com violência e que ninguém fará os espanhóis se renderem às armas, seja lá quem vá portá-las”, disse ele depois de comparecer ao velório do juiz Querol.

Lucros políticos – Até o primeiro-ministro basco, Juan José Ibarretxe, do Partido Nacionalista Basco (PNV), pronunciou-se contra as ações da ETA, mas não deixou de criticar Aznar pelos ataques aos partidos nacionalistas, dizendo que o governo está aproveitando-se da situação para obter lucros políticos. Os nacionalistas afirmam que Aznar está longe de ser um dirigente democrático e equilibrado. Segundo o governo basco, o premiê espanhol está “tirando partido de feitos dramáticos”, numa alusão ao fato de Aznar querer antecipar as eleições regionais, aumentando a força do PP nas três províncias bascas. A maior parte da população do País Basco concorda com os objetivos separatistas do Eusko Alkartasuna (EA), novo nome do Herri Batasuna, braço político da ETA no Parlamento, mas discorda do terrorismo.

Aznar vem estabelecendo uma linha-dura contra os dois partidos nacionalistas (PNV e EA), numa aparente resposta aos reclamos da população. O analista político basco Javier Ribas disse a ISTOÉ que, na visão de muitos espanhóis, o governo “não está sendo suficientemente duro”, no combate ao terrorismo. Por isso, ele acredita que “não haverá nenhum negociação do governo com a ETA até que os terroristas resolvam entregar suas armas.”

Um povo singular

Eles falam uma língua estranha, o euskara, uma das quatro únicas da Europa – além do finlandês, do húngaro e do estoniano – que não pertence à família linguística indo-européia. São famosos navegantes e chegaram à América antes de Cristóvão Colombo pensar em cruzar o Oceano Atlântico. Eles consumiam muita carne de baleia e bacalhau, por isso viajavam longas distâncias para conseguir as iguarias. Sempre foram bons comerciantes e vendiam o bacalhau para os outros católicos nos dias de jejum. Possuem sua própria literatura e seu esporte, o jai lai, uma espécie de squash jogado com a mão. Para cobrir suas vastas cabeleiras negras e encaracoladas, eles usam uma boina que é maior do que a usada em outras regiões da Europa. Habitam até hoje os cantões das montanhas dos Pirineus, a Noroeste da Espanha e Sudoeste da França, por onde vaguearam como pastores de ovelhas. Hoje formam uma população de cerca de 800 mil pessoas que se divide entre quatro províncias espanholas e três francesas. Eles são os bascos, um povo misterioso não apenas na língua e nos costumes, mas também na origem. Há quem diga que os bascos não vieram de lugar nenhum e que são os habitantes originais da Península Ibérica.

No início da Idade Média, esse povo estabeleceu uma comunidade política autônoma. Sentados à sombra de um carvalho na cidade de Guernica, os bascos se reuniam em assembléias duas vezes por ano. Poderosos vizinhos, como os celtas e romanos, fizeram tentativas de subjugá-los à força. Não conseguiram. Desde o século XIV eles foram deixados em paz pelos reis de Castela, mas em 1839 as Cortes (Parlamento) de Madri extinguiram a autonomia política dos bascos.

O nacionalismo basco se intensificou no início da década de 30 com a industrialização e o desenvolvimento de Bilbao, a principal cidade do País Basco. Em 1931, quando a monarquia caiu e a República foi proclamada, surgiu no cenário político um importante líder basco, Antonio Aguirre y Lecumbe, que defendeu o apoio à nascente república desde que esta concedesse autonomia à Euzkasdi, como os bascos chamam seu país. Em 1936, meses antes de estourar a Guerra Civil Espanhola, Aguirre foi eleito presidente da República Basca em uma cerimônia na cidade de Guernica. No ano seguinte, as tropas do general Francisco Franco, apoiadas pela Alemanha e Itália, bombardearam Guernica, um episódio que seria imortalizado por Pablo Picasso.

Em 1959 surgiu um movimento separatista basco, liderado pela ETA (Euzkadi ta Azkatasuana ou Pátria Basca e Liberdade), que defendia a luta armada para conquistar a independência. A organização se celebrizou em 1973 com o atentado que matou o almirante Carrero Blanco, o primeiro-ministro espanhol designado sucessor de Franco. Quando a Espanha iniciou a transição para a democracia, em 1978, o País Basco conquistou o direito de usar a sua própria língua e de ter um Parlamento. A trégua da ETA com o governo espanhol durou até 1983. A organização passou a ter como alvo não só os políticos e militares, mas também os civis. Em 1998, a ETA anunciou uma trégua, rompida no início de 1999. Os métodos terroristas da organização, tolerados durante a ditadura franquista, hoje não encontram apoio no País Basco.