Quem pensa que esporte é coisa de branco está muito enganado. Mais do que apito, índio quer bola na rede e não perde uma boa partida de futebol. É o caso das tribos karipuna, galibi marworno, galibi do Oiapoque e palikur, que participam todo ano dos Jogos Indígenas do Amapá. Habitantes de aldeias na região do Oiapoque, no extremo Norte do Brasil, eles conheceram o futebol ainda nos anos 30, quando as primeiras escolas foram instaladas no local para ensinar aos nativos o amor à pátria, o hino nacional e a língua portuguesa. Setenta anos depois, eles elegem Romário e Ronaldinho seus maiores ídolos e dão um show de versatilidade ao aliar vôlei, futebol de campo e natação no rio Curipi a modalidades esportivas pouco ortodoxas como arco-e-flecha, corrida de tora, canoagem, cabo-de-guerra e zarabatana. Entre os dias 22 e 29 de outubro, a aldeia karipuna do Manga, a 20 quilômetros de Oiapoque, sediou a sexta edição dos jogos. O ânimo desses brasileiros deu para apagar um pouco a lembrança das Olimpíadas de Sydney.

Como todos os anos, a semana começou com uma demonstração de turé, o ritual sagrado liderado pelo pajé Raimundo Iatarrá. Os índios pintam o rosto de vermelho e afinam as flautas de bambu para a dança de roda. A festa é regada a caxiri, a bebida à base de mandioca tradicional do lugar (leia quadro à pág. 66). Presentes à celebração, os atletas de 14 equipes, devidamente uniformizadas, desfilam em torno do campo de futebol para representar as suas aldeias. Alguns chegam a atravessar mais de seis horas de voadeira (barco a motor) antes de serem recebidos no Manga pelo cacique Luciano dos Santos, membro da mais importante família karipuna. Luciano lidera a terceira maior aldeia do município, com mais de 400 habitantes. Lá, no último ano do século XX, a paisagem surpreende. Acostumados ao contato com a civilização há mais de 100 anos, os nativos assistem à novela todas as noites e a maioria das casas é construída com tábuas de madeira e telhado de amianto. Dezenas de antenas parabólicas espalhadas pelo terreno captam imagens via satélite até as 22h, quando o gerador movido a diesel interrompe sua atividade.

Uma assembléia anual com a participação de todas as aldeias da região decide qual será a sede dos próximos jogos. “É a segunda vez que o Manga recebe os atletas. Centenas de pessoas chegam de canoa, catraia (voadeira) ou caminhão”, conta o cacique Luciano. Entre os visitantes está Dalton dos Santos, morador da aldeia Estrela e campeão da prova de zarabatana. Em três tentativas, ele acertou duas vezes na mosca e totalizou 24 pontos, bem acima da média dos adversários, por volta de 10 pontos. Supor que Dalton utiliza o instrumento para caçar na mata é inevitável, mas é um erro. “Ao contrário do que acontece em outras regiões do País, aqui usamos arco e flecha e armas de fogo”, explica o vencedor. Tanto que a zarabatana é improvisada com canos de PVC e as flechas são confeccionadas a partir de prego e papel.

Camilo Vannuchi
Vania foi a primeira a cruzar a linha de chegada com a tora nas costas

Polêmicas – Os índios sabem melhor do que ninguém o significado do velho bordão “o importante é competir”. No entanto, isso não impede que uma ou outra jogadora de futebol derrame algumas lágrimas após perder um pênalti decisivo. Regras pouco claras são motivo de polêmicas, difíceis de serem solucionadas dada a falta de um regulamento escrito. Confusão marcou o resultado da prova feminina de corrida de tora, espécie de revezamento em que o tradicional bastão é substituído por um pedaço de tronco de árvore. Vanda Batista Aniká, da aldeia Paxiubal, foi a primeira a cruzar a linha de chegada com a tora nas costas, mas os adversários da aldeia Estrela reivindicavam para si a vitória por serem a primeira equipe a chegar completa. Depois de arfar por longos minutos, Vanda apresentou seu ponto de vista. “Ganha quem chegar com a tora primeiro, mesmo que os parceiros fiquem para trás”, diz.

A presidente da Associação dos Povos Indígenas do Oiapoque (Apio), Vitória Primo dos Santos, e o administrador da Funai de Oiapoque, Mário dos Santos, ambos índios karipuna, uniram forças para organizar o evento. Responsável pelos mais de quatro mil índios residentes no município, Mário não esquece a política nem em momentos de descontração. “Os jogos contribuem para fortalecer a unidade entre as tribos. Os povos daqui mantêm mais semelhanças do que diferenças entre si. Com isso, conseguimos a cooperação de todos em torno de projetos que interessem à comunidade”, diz. No último pleito municipal, quatro índios sagraram-se vereadores em Oiapoque, todos pelo PSB. O partido é o mesmo do governador João Alberto Capiberibe, responsável por instituir os Jogos dos Povos Indígenas do Amapá logo no início de seu primeiro mandato, em 1995, por meio do Departamento Estadual de Desporto e Lazer (DDL).

Turé, suor e caxiri
Camilo Vannuchi
RITUAL O caxiri alegra o céu e a terra

Para aquecer o corpo e animar os atletas antes do início dos jogos, os índios da aldeia do Manga preparam uma festança. As olimpíadas começam com uma demonstração do turé, ritual sagrado liderado por um pajé que eleva danças e cantos em louvor aos seres sobrenaturais chamados karuãna. São eles os responsáveis pelas curas mediadas pelo pajé. Realizar um turé significa retribuir a cumplicidade desses seres. Para isso, doentes atendidos pelo pajé e seus familiares reúnem-se para produzir o caxiri (ou caxixi) e oferecê-lo aos espíritos durante o ritual. Trata-se de uma bebida alcóolica à base de mandioca, fermentada durante dois dias e servida em cuias aos participantes.

Já calibrados com alguns goles de caxiri, os índios tocam flautas de bambu enquanto o pajé entoa cânticos sagrados. Diz-se que as canções foram ensinadas durante o sono pelos próprios karuãna. Conhecer um repertório extenso de cânticos é sinal de amizade estreita com um grande grupo desses seres, o que eleva a moral e a credibilidade do pajé perante sua clientela. Associados a animais da mata, os karuãna são homenageados com movimentos coreografados e cantos específicos para cada um, conhecidos como arremedos. Assim, o pajé lidera uma fila de casais dançarinos para “arremedar” (imitar) o tucano, o mutum, o macaco, a sucuriju ou o urubu.