A Aids ainda surpreende. Enquanto a ciência investe pesado na descoberta de medicamentos mais potentes e com menos efeitos colaterais, a epidemia contra-ataca. Apesar de o cerco ao HIV, vírus responsável pelo mal, estar se fechando, ele consegue se disseminar de modo mais intenso entre alguns grupos por causa do descuido na prevenção. Isso não quer dizer que a contaminação esteja fugindo do padrão dos últimos anos. De acordo com o governo, há cerca de 20 mil novos casos de Aids por ano no Brasil. “Essa média tende a se manter”, sustenta o infectologista Marco Vitória, da coordenação do programa nacional de combate à doença. O problema é que agora ela conquista terreno entre a população de menor escolaridade, faz mais vítimas entre as mulheres e tende a crescer entre os jovens. Ou seja, a epidemia está mudando de cara mais uma vez (no começo, a enfermidade incidia principalmente sobre os homossexuais masculinos; depois, transformou-se em ameaça igual para homens e mulheres).

A razão de a Aids se estender sobre a população de baixa escolaridade é clara. “Essas pessoas têm pouco acesso à informação, situação que dificulta a prevenção e interfere na aderência ao tratamento”, explica o infectologista Jamal Suleiman, do Hospital Emilio Ribas, de São Paulo. Em 1991, 39,2% dos homens infectados eram analfabetos ou semi-alfabetizados. Mulheres nessas condições totalizavam 50,5% das soropositivas. Em 2000, os homens com baixa escolaridade representavam 61,5% dos novos portadores de HIV; as mulheres, 69,6%.

Mulheres – Além de se expandir na base da pirâmide social, a Aids se espalha entre os heterossexuais. Em 1995, pessoas com esse perfil respondiam por 25% dos novos casos. Em 2000, esse índice cresceu para 50% das transmissões notificadas. Nesse grupo, observa-se o crescimento cada vez maior da contaminação de mulheres. “Nos últimos anos, elas estão se infectando mais”, afirma o clínico Luiz Teramussi, de Brasília, que há 19 anos trata soropositivos. De fato, em alguns pontos do País, elas já lideram as estatísticas. Em 1995, havia 38 cidades nessa situação. Hoje, em 160 municípios, há mais mulheres contaminadas do que homens. Muitas foram infectadas pelo parceiro. A secretária C.G., 39 anos, de São Paulo, se encaixa nessa descrição. Descobriu que tinha pego o vírus do marido após dez anos de casamento. O companheiro morreu dois anos depois do diagnóstico. Até hoje, a secretária não sabe como o ex-parceiro contraiu o vírus. A história dela se repete todo dia com dezenas de mulheres mais velhas e casadas. Nessas relações, o uso da camisinha não é comum. É um hábito difícil de ser mantido mesmo quando a vida da soropositiva recomeça com outra pessoa. C. atualmente se relaciona com um portador de HIV. “Usamos camisinha. Mas, de vez em quando, a gente tem vontade de esquecer a doença e relaxa um pouco no cuidado”, diz.

Risco – Atitudes dúbias como essa deixam os profissionais de saúde em estado de alerta. Eles acreditam que muitas pessoas, inclusive as já contaminadas, estão menosprezando a gravidade da doença por ela ter deixado de ser uma sentença de morte para se tornar um mal crônico. O estudante Fernando (nome fictício), soropositivo de 22 anos, de Brasília, admite que teve relações sem camisinha com um parceiro infectado. “O tratamento me fez sentir tão bem que achei que podia ficar mais tranquilo nas relações”, garante. “Foi um erro. Não quero correr o risco de me recontaminar com alguma cepa de vírus mais resistente”, afirma o estudante, que frequenta as reuniões do grupo Flor de Lótus, para pessoas que vivem em conflito com a doença.

Uma das consequências desse afrouxamento na prevenção é o recrudescimento da infecção entre os homossexuais masculinos. Embora ainda não apareça nas estatísticas, esse quadro já se insinua em pesquisas. Levantamento recente realizado em São Paulo pelo Ibope mostrou que 88% dos gays asseguram se cuidar mais. Porém, 10% acreditam que há um aumento da falta de cuidado entre os homossexuais mais jovens. “Os mais novos não viram a cara feia e mortal da doença”, avalia o ativista Hugo Hagstrom, da ONG Grupo de Incentivo à Vida (GIV). Para intensificar os esforços de prevenção entre os gays, diversas ações estão em projeto. Uma delas começará nos cinemas paulistas no dia 30, véspera do dia mundial da Aids. Será uma campanha do programa estadual de controle da doença composta de dois curta-metragens. Fantasia mostra um rapaz nu tendo um sonho erótico. Ele acorda, procura a camisinha na gaveta e o sonho recomeça. O outro (Exibicionista) se passa num banheiro onde acontece a paquera entre homens. No mesmo dia, o GIV promoverá uma manifestação na capital paulista para reavivar o orgulho gay e lembrar que este já foi um dos grupos mais atentos à prevenção.

Entre os jovens heterossexuais, a tendência também é de crescimento. Neste caso também não há números oficiais que expressem essa curva de ascensão, mas a mudança já é sentida nos consultórios. “Hoje sou procurado por jovens de 17 anos. Antes, a faixa etária dos pacientes era mais elevada”, afirma o infectologista Artur Timerman, de São Paulo. “Acho que existe alguma relação com o uso exagerado de álcool. Eles perdem a censura e transam sem camisinha”, completa. O médico Teramussi concorda: “Neste momento, é crucial orientar os adolescentes antes que eles iniciem a vida sexual”, diz.

Todos esses esforços são vitais para evitar que o problema se multiplique. Mas é preciso também insistir na luta contra o preconceito, que volta e meia se manifesta mesmo nas capitais. Em São Paulo, por exemplo, o gerente comercial G.A., 48 anos, ainda prefere o anonimato. Teme que sua condição de portador do HIV prejudique a carreira. “Meus chefes não podem me despedir por causa da Aids, mas já vi muita gente ficar sem função até pedir para deixar o emprego. Para mim, isso seria uma tortura. Quero me aposentar trabalhando”, afirma. Mas há quem acredite que assumir a doença torna a vida mais fácil. “A exposição ajuda a combater o preconceito”, afirma Hagstrom, do GIV.