Há três anos, boas notícias econômicas vindas da Argentina pareciam impossíveis. Mas, depois de uma profunda recessão (que em três anos diminuiu em um quinto a economia do país), a produção argentina dá sinais de recuperação. Une-se ao crescimento de 9% do PIB em 2004 e à reestruturação de 76% da dívida do país mais um indicador de que nossos vizinhos estão mesmo se recuperando. Reduzida à metade entre 2000 e 2002, quando cinco mil postos de trabalho desapareceram, a indústria automobilística argentina está voltando aos bons tempos e retomando os investimentos. A produção de 2004 foi 53,5% maior do que a do ano anterior, com o lançamento de 260 mil veículos. Já as vendas deram um salto espetacular de 100% e bateram a casa das 311 mil unidades. Os dados são da Adefa, a associação que reúne os fabricantes locais. Para este ano, as previsões são de produzir 330 mil veículos e vender 500 mil unidades até 2007. Calcula-se ainda que o setor receberá mais de US$ 600 milhões em investimentos nos próximos dois anos. Mas, em meio a tantas notícias positivas, há uma séria preocupação. A retomada do crescimento trouxe ao governo argentino o temor do aumento da inflação – que pode chegar aos dois dígitos este ano (já acumula 2,5% nos primeiros dois meses).

Se o farol está verde para as montadoras de veículos, o vermelho piscou para as empresas que abastecem os tanques dos carros argentinos. Há duas semanas, o presidente Néstor Kirchner, conhecido também como Pinguim pelo seu jeito atabalhoado, deu continuidade a sua política econômica heterodoxa ao adotar o boicote como forma de barrar o aumento de preços. A Shell, multinacional anglo-holandesa, foi a primeira a enfrentar a ira dos argentinos, ao reajustar o preço de seus combustíveis em 2,6% a 4,2%. Kirchner, furioso, convocou a população a boicotar a companhia. “Não comprem sequer uma lata de óleo”, decretou Pinguim. Após o apelo nacional do presidente, as vendas da Shell despencaram 60%, e os postos de gasolina foram ocupados por piqueteiros aos gritos de “Shell, go home”. A estratégia agradou até mesmo a parte do empresariado local, como o presidente da Confederação Argentina da Média Empresa, Osvaldo Cornide, que subiu no palanque para bradar contra a Shell. Mas isso não impediu que a americana Esso também aumentasse seus preços. Já entre as empresas que também atuam na exploração de petróleo em solo argentino, a estratégia deu certo. Tanto a espanhola Repsol (líder do mercado argentino) quanto a brasileira Petrobras não ousaram mexer nos preços.

Congelamento – O boicote nacional, o primeiro desde 1983, quando os argentinos deixaram de comprar produtos britânicos durante a guerra das Malvinas, faz parte do esforço do atual governo para conter uma possível escalada da inflação, prejudicando as previsões de crescimento da economia em 2005. Desde 2002, os preços dos serviços públicos estão congelados. Eficiente dentro das fronteiras do país, já que conta com a adesão do político povo argentino (90% apóia a atitude de Kirchner, segundo o site Clarín Online), a medida não causou uma boa impressão nos investidores estrangeiros pelo fato de apenas uma empresa ter sido contra e também pela sugestão do presidente, aos donos da bandeira Shell, para que a trocassem pela venezuelana PDVSA.

Continuando sua cartilha nacionalista e populista – que tem lhe garantido o apoio da população –, o goveno Kirchner muda de estratégia quando se trata do empresariado nacional. Deixando de lado o enfrentamento direto, Kirchner sentou à mesa de negociação com grandes redes varejistas e fabricantes de diversos produtos, principalmente da cesta básica. Na terça-feira 22, dos representantes do setor lácteo (queijo, leite e iogurtes) ele ouviu a promessa de que por pelo menos 150 dias os preços desses produtos estarão nas prateleiras com redução entre 1,5% e 8%. Com os proprietários de açougues, o governo está tendo mais dificuldade. Mas o acordo para a redução de 10% nos preços da carne já conseguiu a adesão de 30% do setor.

Retomada – Boicotes à parte, a indústria automobilística vive um momento especial e, por enquanto, sua preocupação está voltada para a retomada dos investimentos no país. Última montadora a lançar um carro fabricado em solo argentino, no começo deste mês a japonesa Toyota colocou US$ 200 milhões em sua planta de Zárate, a 60 quilômetros de Buenos Aires, para produzir a nova caminhonete Hilux. O investimento gerou 700 empregos e elevou a produção para 45 mil unidades/ano. Somado ao que sairá da fábrica brasileira, onde é produzida a família Corolla, o número de veículos fabricados pela divisão Mercosul ultrapassará os 100 mil. “Com o Corolla e a nova Hilux, estabelecemos as condições para que a região se torne uma das bases de exportação para a América do Sul, o México e o Caribe”, diz Luis Carlos Andrade Júnior, vice-presidente da Toyota Mercosul.

A americana Ford, na Argentina há 91 anos, também renovou sua picape, a Ranger, que ganhou motor eletrônico a diesel e será exportada para Chile, Venezuela, Equador, México e Brasil. No ano passado, a divisão da América do Sul chegou ao azul com lucro de US$ 140 milhões, contra prejuízo de US$ 130 milhões em 2003. A produção argentina deu um salto de 70%, colocando a Ford como a maior fabricante e maior exportadora do setor. A título de comparação, no Brasil o crescimento foi de 11%. “A formação de blocos é irreversível na política mundial. Por isso, pensamos a região como um todo”, diz o presidente da Ford América do Sul, Antonio Maciel Neto.

Para o cientista político João Paulo Cândia Veiga, da Universidade de São Paulo (USP), especialista em indústria automobilística do Mercosul, as empresas aprenderam com a desvalorização do real que limitar os negócios ao Brasil e à Argentina é muito perigoso. “Diversificar as exportações significa proteger-se de eventuais crises em um dos dois países”, explica Veiga. É o que todas estão fazendo. A francesa Peugeot-Citroën, que já foi a maior produtora argentina (em 2000, foram69 mil veículos), anunciou no ano passado um aporte de US$ 150 milhões na produção de um carro de cada marca e ampliação da linha de motores, que serão exportados para a América Latina.

Ainda bem abaixo dos 58 mil carros montados em 2000, a Renault prevê a produção de 30 mil unidades para este ano. Nos planos também está a modernização da fábrica em Santa Isabel, na província de Córdoba. O momento é tão otimista que até mesmo a Scania, que parou sua produção em 2002 e desde então fazia apenas transmissões, já ensaia uma retomada. Por enquanto produzirá somente algumas unidades do caminhão P310. A Fiat, também parada desde 2002, ainda não se animou, mas o número de motores que deixarão a fábrica de Córdoba em direção ao Brasil será 50% maior que em 2004. Serão 30 mil unidades, contra 20 mil em 2003.

Problemas – Até o final de 2006, a Volkswagen também entrará na corrida com a produção de um derivado do Fox. Serão gastos US$ 200 milhões. Ao anunciar o investimento no ano passado, o presidente da Volks argentina, Viktor Klima, disse que 90% da produção será exportada. Já a rival General Motors contratou, em 2004, 300 empregados para o segundo turno da fábrica de Rosario. Com isso, ela superou as vendas de 2003 na Argentina em 28% e atingiu o recorde de US$ 1,6 bilhão em exportações da GM Mercosul, que inclui Brasil e Argentina.

Mesmo com toda a disposição das montadoras para exportar, ainda há alguns empecilhos a serem superados. “No Brasil, há um tripé perigoso para as exportações. Além da carga tributária e da desvalorização cambial, o preço do aço no mercado é 80% mais alto que o praticado no mundo inteiro. Apesar da estabilidade do peso, na Argentina também existe o mesmo problema com os impostos e com o aço, além de o mercado ser menor”, avalia Maciel. No front interno ainda é cedo para saber se a tática do Pinguim, de manter os preços congelados, conseguirá de fato afastar o temido dragão da inflação.