Pressionados pelo conservadorismo, deputados adiam a aprovação do código que representa um avanço no direito brasileiro

Maior especialista em direito de família no Brasil, o advogado Paulo Lins e Silva, 71 anos, acompanhou na linha de frente cerca de 50 anos de transformações comportamentais envolvendo casamentos, divórcios e relações entre pais e filhos. Advogado de casos famosos, como o que deu a guarda do filho de Cássia Eller, morta em 2001, à companheira da cantora, Maria Eugênia, afirma que o Brasil evoluiu muito na área, mas critica a morosidade do legislativo.

VERMELHA-1A-IE.jpg
MUDANÇAS
"Hoje, quando uma criança perde o pai ou a mãe, ela pode ficar com a avó, o
avô, um amigo, ou vizinho. É o interesse da criança que tem que prevalecer"

 

“O Estatuto da Família anda a passos de cágado na Câmara”, afirma. Prestes a lançar o livro “O Casamento – Antes, Durante e Depois”, em que fala de sua trajetória e das mudanças de costumes ocorridas no País nas últimas décadas, Lins e Silva celebra os novos modelos de família. “Ninguém imaginava, há 20 anos, que reconheceríamos o casamento de pessoas do mesmo sexo”, diz.

VERMELHA-2-IE.jpg
"Já vi crianças de três anos de idade que, diante de uma separação,
dizem preferir ficar com o pai, o cara que acorda, dá mamadeira, vai passear"

 

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

O advogado também viu seu nome envolvido em outra polêmica, o caso do menino Sean, no qual a mãe, brasileira, deixou os Estados Unidos com o filho e se casou, no Brasil, com João Paulo Lins e Silva, seu filho. Após a morte dela, Sean voltou aos EUA depois de uma ferrenha disputa judicial para viver com o pai biológico. “Se tivéssemos uma legislação em que esse tipo de caso fosse tratado no âmbito da vara de família esta­dual, Sean não teria ido.”

VERMELHA-3-IE.jpg
"Se tivéssemos uma outra legislação, Sean (à dir. com o
pai biológico) não teria ido embora para os Estados Unidos"

 

ISTOÉ

 O sr. tem uma vasta experiência de família e está nesse meio desde a década de 1960. O que mudou de lá para cá? 

 
Paulo Lins e Silva

 O direito de família não pode ficar estático, tem de estar sempre mudando. Aqui está em transformação desde a Constituição, com a criação de uma série de leis, até o novo Código Civil. E há também as leis recentes, que tratam de alienação parental, guarda compartilhada e das uniões homoafetivas. Ninguém imaginava, há 20 anos, que reconheceríamos o casamento de pessoas do mesmo sexo.

 
ISTOÉ

 Qual a posição do Brasil nessa área em relação a outros países do mundo?

 
Paulo Lins e Silva

 O direito de família brasileiro é o mais avançado que existe. Agora, já virou cultura que muitas vezes o poder judiciário legisle. É uma característica interessante. Quando o poder legislativo se omite, e ele vem se omitindo com relação, por exemplo, às uniões homoafetivas, é o poder judiciá­rio que faz as leis. Vemos pessoas do mesmo sexo vivendo juntas, buscando o casamento, mas não se legisla a respeito. O Congresso emperra o Estatuto da Família para não se aprovar, mesmo que a Corte Suprema já tenha reconhecido o direito deles viverem em uma união estável. Quando a lei é omissa, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Superior Tribunal Federal (STF) partem para decidir diante da burocracia, da morosidade e dos entraves que o poder legislativo cria com o excesso de conservadorismo enquanto a sociedade avança, evolui.


 
ISTOÉ

 E quais os principais entraves atualmente?

 
Paulo Lins e Silva

 Temos uma novidade incrível que seria o reconhecimento do Estatuto da família, um verdadeiro código da família fora do Código Civil. E isso está lá, andando a passos de cágado, com briguinhas de deputados da área evangélica. Essa área, com seu conservadorismo, tem prejudicado bastante. 

 
ISTOÉ

 Com a legislação sobre a união estável, mudou muito a relação entre os casais? 

 
Paulo Lins e Silva

 Antigamente, havia um conservadorismo, os namoros eram em casa, o casal noivava, marcava o casamento entre seis meses a um ano depois. Aí as famílias passavam a conviver. Hoje a garotada começa a namorar, não há mais tabus de virgindade, meninas com 16, 17 anos já estão indo dormir na casa dos pais do namorado e vice versa, o que é muito mais saudável. Aí o casal resolve alugar um apartamento e morar juntos. Depois de um tempo, a mulher engravida. Após uns dez anos juntos, se perguntam: por que a gente não se casa?  Com a união estável, o casamento passa a ser um ato de amadurecimento de um casal que conviveu. 

 
ISTOÉ

 Quais as situações mais inusitadas com as quais tem lidado?

 
Paulo Lins e Silva

 Recentemente, fiz um divórcio de uma família multiparental. Ele era casado com ela, e ela arranjou um namorado. Os três conviveram juntos por dez anos. A mulher chegou a ter um filho com o marido. Aí ela quis ficar só com o esposo. Fiz o documento em que os três assinaram dando quitação ao período da vida em comum. Tive entre meus clientes também um casal que resolveu se divorciar porque ela se apaixonou por outra mulher e outro em que ele largou a família pra ficar com um homem. Hoje é o afeto que prevalece.


 
ISTOÉ

 Um dos temas que mais se fala atualmente é a questão da guarda compartilhada. Como o sr. vê isso? Acredita que deve ser obrigatória no caso da separação?

 
Paulo Lins e Silva

 A guarda compartilhada sempre existiu, só mudaram o nome. Ela é o exercício do poder familiar.  O compartilhar é dividir o afeto, o apoio, as obrigações, o sustento e orientar de forma justa, ética e equânime. Se o pai arrumou outra e a mãe, outro, não é motivo para tirar a guarda. O mais importante é preservar o interesse da criança.

 
ISTOÉ

 Acontece com frequência de, na hora do divórcio, o casal estar em pé de guerra e um jogar o filho contra o outro? 

 
Paulo Lins e Silva

 Isso existe muito, por isso há uma lei muito séria, com sanções pesadas, para resolver o problema de alienação parental. Sabia que 83% dos alienantes são mães? Elas acham que os filhos são delas, aí separam e começam a criar problemas. ‘Mamãe te ama, não acredita no papai’, ou então, ‘Filho, se você quer ir com a mamãe para Disney, não vai com o seu pai, não’. Isso acontece a toda hora no meu escritório. Para mudar essa situação, só com punição. E os juízes não têm dado mole, não. Já tive casos de criança que cuspia na cara do pai quando o via. Ou de mãe que dizia que iria se matar se o filho fosse com o pai.

 
ISTOÉ

  O que mudou em relação ao papel do homem e da mulher na criação das crianças?

 
Paulo Lins e Silva

 Atualmente, a mulher é responsável por entre 60% a 80% do sustento da casa e compete de igual para igual com o homem. Concorre na profissão, no lar e na educação dos filhos. Com isso, já vi crianças de três anos de idade que, diante de uma separação, dizem preferir ficar com o pai, o cara que acorda, dá mamadeira, troca fralda, vai passear,  enquanto a mãe está lá, no trabalho. 

 
ISTOÉ

 O senhor trabalhou no caso do filho da Cássia Eller, cuja guarda ficou com a mulher da cantora. Antes, houve um embate com a família dela. Se fosse hoje, acredita que seria mais fácil dar a guawrda à companheira?

Paulo Lins e Silva

 Sim. A cada dia que passa essa questão evolui mais. Hoje, quando uma criança perde o pai ou a mãe, ela pode ficar com a avó, o avô, um amigo, ou vizinho. É o interesse da criança que tem que prevalecer. 

 
ISTOÉ

 Mudar a legislação em relação à união homoafetiva contribuiu para diminuir o preconceito?

 
Paulo Lins e Silva

 Acredito que o costume venha antes da lei. A legislação só se sacramenta, só se torna positiva, depois que a sociedade vivencia o costume. 

 
ISTOÉ

 No caso de um casal de mulheres se tornarem mães depois de uma delas engravidar e elas se separarem, como fica a guarda nesse caso? 

 
Paulo Lins e Silva

 Tenho caso idêntico a essa situação. Uma das mulheres engravidou, teve o filho. Depois, a companheira arranjou outra, se separaram, e elas estabeleceram um sistema de visitação. Uma semana uma leva na escola, na outra semana a outra leva. É muito comum as duas terem a guarda e fixarem um critério de visitação.

 
ISTOÉ

 A atriz colombiana Sofia Vergara entrou em uma polêmica ao querer destruir os óvulos fecundados que ela e seu então marido congelaram quando estavam juntos. No Brasil, existe alguma legislação sobre esse tema?

 
Paulo Lins e Silva

  Não temos lei sobre isso. Mas o que acho que vai acontecer, em breve, é que a mulher, ao chegar à adolescência, vai recolher diversos óvulos e subtrair todo o aparelho reprodutivo. Para evitar menstruação, TPM, etc. Já defendi essa tese em congressos internacionais. O homem da mesma forma: para evitar o risco de engravidar quem ele não queira, vai guardar o sêmen dele em um banco e se esterilizar. O sexo vai ser só para prazer, para os dois curtirem um ao outro. Depois de um tempo, quando quiserem ter filhos, chamarão o geneticista e dirão: “Olha, queremos uma menina de olhos azuis, com tal altura e que tenha tendência atlética.” Não sou Aldous Huxley, mas essa é minha tese para o futuro. E não demora mais dez anos para isso ser uma realidade. 

 
ISTOÉ

 O nome da família Lins e Silva ainda é lembrado pelo caso do menino Sean, enteado do seu filho, que casou com a mãe do garoto e foi alvo de acusações do pai biológico. De lá pra cá, houve alguma mudança na lei em casos de transferência da criança de um país para o outro?

 
Paulo Lins e Silva

  Nós estamos lutando pela proposta de emenda constitucional que estipule que esses casos sejam tratados na Justiça estadual. Se já fosse assim na época do Sean, ele não teria ido para os Estados Unidos (com o pai biológico, que ganhou a disputa com o filho de Lins e Silva). A Justiça estadual tem know how, experiência, o juiz está acostumado a lidar com essas questões. O magistrado federal não tem essa vivência. Precisava ter sido feita uma pericia psicológica, com acompanhamento de assistente social e um juiz de familia que ouvisse a criança. E isso não aconteceu no caso do Sean.

 


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias