Situado na Broadway paulistana, como o bairro da Bela Vista é chamado, o Teatro Sérgio Cardoso fica a poucos metros da sede da União Municipal de Estudantes Secundários (Umes) e bem perto do antigo Teatro de Arena, também na região central de São Paulo. Quando suas cortinas se erguerem na sexta-feira 16 para a estréia da peça A luta secreta de Maria da Encarnação, de certa forma Umes e Arena estarão juntos no palco. Na década de 50, o autor do espetáculo, Gianfrancesco Guarnieri, foi presidente da Associação Municipal dos Estudantes Secundários (Ames) – equivalente carioca da Umes –, e seu diretor, Marcus Vinícius Faustini, encarou o cargo de vice-presidente da mesma entidade, 30 anos depois. Em 1958, Guarnieri escreveria Eles não usam black tie, que legitimou para sempre o revolucionário, em todos os sentidos, Teatro de Arena. No cruzamento das coincidências, quando a peça foi adaptada para as telas, em 1981, pelo falecido cineasta Leon Hirszman, o filme de mesmo nome sensibilizou Faustini a ponto de ele deixar de lado o movimento estudantil para se dedicar ao teatro.

Com A luta secreta de Maria da Encarnação ele reúne 39 atores, 20 músicos da recém-criada Orquestra Jovem Tom Jobim do Estado de São Paulo e cerca de 25 técnicos, todos envolvidos numa produção de quase R$ 1,5 milhão. Mulher sofrida, estuprada na roça onde nasceu, Maria da Encarnação, viúva de Evaristo (Carmo Dalla Vechia) e mãe de duas filhas desaparecidas, vive entre delírios e lembranças com a irmã Setembrina (Claudia Melo) e o genro Agenor (Ênio Gonçalves). Pontuada por músicas de Renato Teixeira, a peça se passa em vários planos. Através deles, as recordações da protagonista atravessam a história recente do Brasil e seus costumes. Da época do Estado Novo à ditadura militar, da alegria espontânea de um povo cujo calendário é pontuado por festas populares ao transe coletivo das pessoas se acotovelando diante de um aparelho de televisão.

Alegria – Na semana passada, durante o primeiro ensaio corrido com a orquestra, que executará a trilha de Teixeira ao vivo, os olhos de Guarnieri brilhavam. Sua presença assumia um caráter quase solene. Enfraquecido pelas sessões diárias de hemodiálise, Guarnieri sai pouco de casa. Mas, apesar do incômodo das sequelas de um aneurisma na aorta, ele se mostrava radiante com o criativo cenário caótico executado pelo premiado J.C. Serroni. Para a cena de abertura, por exemplo, o cenógrafo inventou um lixão entre as ruínas de um viaduto desmoronado. Com muitas referências, Faustini acredita que o espetáculo cria um novo momento na dramaturgia nacional. “É chegada a hora de o teatro voltar a refletir o que acontece à sua volta”, diz ele. Maria é interpretada em três fases de sua vida. Quando criança, pela atriz mirim Tawane; na juventude, por Vanessa Gerbelli; e, na maturidade, por Suely Franco, uma paixão teatral antiga de Gianfrancesco Guarnieri, que só agora ele realiza profissionalmente. As três Marias contracenam simultaneamente com personagens ligados à realidade imediata e com outros saídos de sua memória. Começando por Evaristo – o marido covardemente assassinado que volta e meia é visto acompanhando o próprio enterro –, seguido de Caieiras (Ewerton de Castro), pai de sua segunda filha, há muito desaparecido. Valendo-se deste recurso, Guarnieri pôde repassar temas que lhe são caros, como a luta de classes e a compaixão, sem precisar recorrer a idas e vindas no roteiro, cuja encenação foi possível com o apoio do Instituto Takano de Projetos e seu diretor executivo, Marcos Weinstock.

Trilha em disco – Renato Teixeira acompanhou a confecção da peça desde o início. Chegou a compor temas e trechos de letras antes mesmo de as cenas assumirem a forma definitiva. São oito músicas arranjadas por Natan Marques e regidas pelo maestro e saxofonista Roberto Sion. Mesmo sabendo que foi chamado porque Edu Lobo, parceiro tradicional do dramaturgo, estava envolvido com Cambaio, musical que divide com Chico Buarque, ele se sentiu honrado com o convite. “Vou ter que esperar pelo disco previsto pelo projeto para ver se enquadro o velho em uma parceria”, brinca o cantor e compositor. A idéia é aproveitar as melhores vozes do elenco e convidar nomes como Gal Costa e Maria Bethânia para interpretar as outras canções que completarão o álbum. Em meio a este processo diferenciado, Guarnieri gosta de lembrar uma curiosidade sobre a música Upa neguinho!, sua parceria com Edu Lobo, composta para a peça Arena conta Zumbi (1965), de sua autoria e de Augusto Boal. “Nós a tiramos do roteiro porque ninguém conseguia cantá-la. Quando Elis Regina estourou com a canção, tivemos de recolocá-la na peça às pressas, sob pena de sermos acusados de propaganda enganosa”, ri satisfeito.


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