Um depoimento prestado à Polícia Federal em Governador Valadares (MG), na quinta-feira 17, pode pôr atrás das grades políticos e empresários responsáveis por uma milionária rede especializada em levar, de forma ilegal, cidadãos brasileiros para os Estados Unidos. Um negócio que, segundo a PF, movimenta US$ 300 milhões por ano. Com o compromisso de – por razões de segurança – preservar a identidade do denunciante, ISTOÉ obteve uma cópia do depoimento. São cinco páginas de informações que permitem à polícia fechar o cerco de uma investigação que já dura cerca de um ano e foi batizada de Operação Tequila. O documento revela todos os passos dados por uma dessas quadrilhas. O líder de cada esquema é chamados de “cônsul”. O depoimento dá nome aos bois: Wanderley Vieira de Souza, 33 anos, prefeito petista de São Félix de Minas, é um deles. No município com menos de quatro mil habitantes, apenas uma rua pavimentada e receita mensal de R$ 170 mil, a acusação formal contra o prefeito não parece ser novidade. É voz corrente na cidade que ele, apenas no último ano, teria levado mais de 200 pessoas para os EUA. “O esquema dele é goiaba sem bicho”, dizem. Não é bem assim.

Familiares de brasileiros que deixaram o País pelas mãos do “Cônsul- prefeito” relatam o sofrimento vivido por seus filhos na aventura de ultrapassar clandestinamente a fronteira do México. “Meu menino levou 23 dias para fazer a travessia do deserto. Ele sofreu muito. Chegou machucado e só com uma muda de roupa”, conta Marly Bernarda Ferreira, 48 anos. “Fiquei com raiva do Wanderley porque ele me garantiu que tudo ia ser tranquilo”, reclama a mãe, que viu seu filho partir para a Flórida há dois meses. Ela entregou a casa onde morava – no valor de US$ 3 mil – e mais US$ 2 mil em espécie para o pagamento da viagem. Outros US$ 5 mil o prefeito aceitou receber em seis parcelas. Uma história que confirma as informações prestadas no depoimento. Segundo o depoente, o prefeito cobra US$ 10 mil para promover a travessia clandestina.

No negócio de traficar pessoas, dos US$ 10 mil pagos por cabeça, US$ 5 mil vão parar no bolso do “Cônsul”, livres de qualquer despesa. Cerca de US$ 700 são destinados às passagens aéreas até o México; US$ 400 são para hotel e alimentação; US$ 500 para transporte terrestre. Pagamento de coiotes – como são chamados os guias do deserto – consome mais US$ 2 mil. Os outros US$ 1,4 mil são divididos entre agenciadores (aqueles que convencem os brasileiros de que os EUA são o melhor lugar do mundo) e receptadores (os que recebem os imigrantes do lado de lá da fronteira mexicana).

Promessa de campanha – Durante a campanha de 2004 – segundo o depoimento na PF –, Wanderley arregimentou um pequeno exército de cabos eleitorais com a promessa de mandá-los para os Estados Unidos caso vencesse as eleições. O delegado Rui Antônio da Silva não terá dificuldade para comprovar a acusação. “Minha filha trabalhou muito na campanha e o combinado com o prefeito foi que depois da eleição ele a mandaria para a América”, diz Marina Pereira dos Reis, 49 anos. De fato, sua filha de 24 anos deixou o Brasil em 28 de outubro do ano passado e hoje vive na Flórida de forma irregular. Outro cabo eleitoral foi Sidney Rodrigues, 18 anos. Ele fez campanha na zona rural da cidade, onde estão mais de 40% dos votos. Trabalhava com o pai na roça e deixou o Brasil em 15 de dezembro. “Não falo com meu filho desde que ele saiu daqui, mas o próprio prefeito mandou me avisar que o garoto chegou bem nos Estados Unidos”, conta o roceiro José Rodrigues, pai de Sidney, que vive num lugarejo distante cerca de dez quilômetros do aparelho telefônico mais próximo.

A mesma sorte não teve a família de Wendel Johnatan, 23 anos. Ex-funcionário da prefeitura, na campanha ele era o locutor oficial dos comícios. Em dezembro foi enviado para os EUA, com mais quatro cabos eleitorais. Na noite de Natal, atravessou o rio Grande – divisa do México com os EUA – a nado e 17 dias depois foi encontrado morto na cidade de Laredo, Texas. O último contato que fez com o Brasil foi com a noiva, Gislaine Miranda Costa. “Na noite do dia 11de janeiro, ele ligou pedindo socorro, pois estaria passando por uma terrível crise asmática. Na hora liguei para o prefeito, que não acreditou e disse que os outros quatro rapazes estavam bem”, lembra Gislaine. “Minutos depois, Wendel voltou a me ligar. Disse que tinha ele mesmo acabado de falar com o prefeito e que um coiote estaria o levando ao hospital.” Um mês depois, os familiares descobriram, através da Embaixada do Brasil nos EUA, que o rapaz estava morto. “Nesse período todo, o Wanderley telefonou várias vezes. No início dizia que Wendel estava internado, depois dizia que ele estava preso”, lembra Wanderlício Pereira, pai de Wendel.

Patrimônio suspeito – Casado e pai de dois filhos, Wanderley é professor de matemática e nos últimos dois anos, antes de se eleger, foi diretor da única escola estadual de nível médio no município. Recebia um salário de aproximadamente R$ 1,8 mil por mês. Em janeiro, já como prefeito, passou a receber mensalmente R$ 4,5 mil. Não se trata de nenhuma fortuna, embora seja um rendimento bem acima da média da cidade. Mesmo assim, não explica seu patrimônio. Wanderley, desde 2000, mora na melhor e mais vistosa casa da cidade, avaliada em R$ 200 mil, e costuma transitar em um Golf prata modelo 2001, que não está em seu nome. A PF está investigando a origem do patrimônio do petista. O prefeito, ouvido por ISTOÉ, nega participar do esquema. Diz que ele mesmo, há cerca de dez anos, tentou entrar ilegalmente nos EUA, mas acabou preso em Belo Horizonte, quando descobriram que usava passaporte falso. “Conheço de perto esse sofrimento”, afirma. Ele admite, porém, ter feito alguns financiamentos para os emigrantes. “Ajudo as pessoas e já avalizei muitos correligionários que manifestaram interesse em deixar o Brasil. Mas quem tem o esquema de mandá-los para fora não sou eu. É o Didi e o Moreira, da Check In Turismo, em Mantena, cidade vizinha”, acusa.

Didi é Didi Gonçalvez Couto, concunhado do prefeito e marido da tesoureira da prefeitura. Ele é dono de uma loja de variedades na cidade e, segundo o depoimento prestado na Polícia Federal, é um testa-de-ferro do prefeito. Moreira é Carlos Moreira, amigo a quem Wanderley admite ter pedido ajuda na noite da morte de Wendel. “Foi o Moreira que ligou lá no México”, acusa o prefeito. Ouvido por ISTOÉ, Moreira nega qualquer atuação no esquema que envolva travessia ilegal. “Como já fui clandestinamente para os EUA, e deu certo, passo meus contatos para as pessoas”, diz. “Hoje, vendo carros”, complementa. Moreira só esqueceu de combinar a sua versão com a secretária da agência Check In Turismo. Maristela, por telefone, confirma que Moreira trabalha lá e acrescenta ser ele o responsável por tratar com quem deseja imigrar para os EUA. A cidade de São Félix de Minas parece imersa em uma estranha sina. O município, emancipado em 1997, teve seu primeiro prefeito cassado por desvio de dinheiro público. Comenta-se na cidade que ele, hoje, vive irregularmente nos EUA, como cozinheiro.