A criança esperneia, chora, se joga no chão. Abre o maior berreiro no corredor do supermercado. A mãe tenta conversar, argumentar. Nada. Dá uma bronca. A cena piora. Vencida, dá uma palmada no bumbum e, como mágica, a manha cessa. Ao redor, olhares aliviados pelo fim do barulho aprovam a atitude da mãe. Afinal, seu papel é educar os filhos e exigir disciplina. A famosa palmadinha é socialmente aceita, apesar de muitos psicólogos e educadores trabalharem para mudar essa mentalidade. Prova disso é a campanha intitulada “A palmada deseduca”, lançada recentemente por especialistas do Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). “Queremos mostrar para a comunidade que há outra maneira de educar, sem violência”, explica a coordenadora da campanha, Cacilda Paranhos.

Os psicólogos se miram em exemplos de países que proíbem legalmente a palmada e acreditam que um dia medidas semelhantes possam ser adotadas no Brasil. “A palmada causa dor e traz sequelas como dificuldade de se relacionar e baixa auto-estima. E não educa. O que educa é amor, carinho e respeito”, ensina Cacilda, mãe de uma menina de 15 anos que nunca levou uma palmada.

Entre os alertas feitos pelos psicólogos, está o caráter progressivo da palmada. “Você dá um tapinha num dia, no outro um mais forte e, de repente, está dando uma surra”, acredita a psicóloga. Esse tema foi amplamente discutido na semana passada durante o seminário Violência e Criança, uma realização conjunta da USP e da Universidade de Tel-Aviv, em Israel, onde a palmada foi proibida em 1996. Especialistas de diversas áreas relacionadas à saúde fizeram questão de frisar a estreita relação entre castigo físico e outras formas de violência doméstica. Ao bater numa criança, os pais mostram a ela que o uso da força física é uma maneira legítima de se conseguir rapidamente o que se deseja. Assim, desperta um sentimento de agressividade inerente ao ser humano. “Se a criança leva um tapa num dia, ela pode dar no outro. Isso dá margem a atos violentos”, acredita a psicóloga paulista Ângela Minatti.

Em crianças com menos de dez anos, o resultado da palmada pode ser ainda pior. Ela corre o risco de se tornar apática, tímida, com medo de se colocar. Simone Gonçalves Assis, professora da Escola Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro, afirma que os pequenos têm maior propensão a desenvolver traumas, o que pode comprometer seu futuro. “Até os dez anos, a criança tende a interiorizar um sentimento de frustração intenso. A partir dessa idade, os jovens submetidos a palmadas podem assumir um comportamento agressivo contra os próprios pais e contra a sociedade”, diz. Em vez de praticar a violência, portanto, os adultos devem dar o exemplo. Mostrar que o diálogo ainda é o melhor método para se chegar a um acordo. “Imagine se os irmãos estão brigando e o pai dá um tapa em cada um para ensiná-los que bater é errado. Nada mais incoerente”, diz Cacilda Paranhos.

Fica uma interrogação, no entanto, se a famosa “palmadinha de amor” – ou um simples tapinha no bumbum – é tão nociva quanto surras constantes. “Palmada sempre é agressão. E criança não é saco de pancada”, diz Maria Amélia Azevedo, coordenadora do Lacri. Um estudo realizado por especialistas do laboratório mostrou que os filhos não consideram um tapa prova de preocupação e amor. “Quando perguntamos a uma criança o que ela sente após uma palmada, as respostas mais frequentes são raiva, dor e tristeza”, conta Maria Amélia. “Tapa de amor é uma invenção dos adultos. ‘Isso é para o seu bem’ é a desculpa mais esfarrapada que os pais já inventaram”, afirma, taxativa.

Tapinha eventual – Grande parte dos educadores e psicólogos concorda com Maria Amélia. Mas alguns admitem o tapinha eventual. O psicoterapeuta Ari Rehfeld, supervisor da Clínica Psicológica da PUC de São Paulo, por exemplo, não condena totalmente a palmada. “Na maioria das vezes, ela é dispensável. Mas em alguns momentos, quando a criança extrapola todos os limites, é até permitida”, pondera Rehfeld. Para ele, o ideal é não bater, mas pior do que um tapinha no bumbum são os gritos e a raiva. “Essa geração pós-hippie, que são os pais de hoje, adotou o lema do ‘é proibido proibir’ e vai a extremos”, diz o psicólogo. “Por exemplo, a mãe chega em casa, encontra o filho pintando a parede da sala e exclama: que lindo!, mas por dentro está com uma tremenda raiva. A criança sabe que aquela aprovação é falsa e fica sem saber qual conduta deve assumir”, completa ele.

A professora da Escola Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro, Maria Cecília Minayo, concorda com Rehfeld. “Uma palmada não é pior do que a violência psicológica, largamente utilizada nas famílias de classe média. É muito ruim para a criança ouvir coisas como ‘você não faz nada direito’ ou ‘não dá para confiar em você’”, acredita. Enquanto a palmada encerra imediatamente a discussão, broncas desse tipo remoem por muito tempo na mente das crianças. “A auto-estima fica lá embaixo. É duro ser desprezado e desacreditado pelos próprios pais”, diz. Ela não defende o tapinha, mas prefere isso à violência psicológica. “Uma palmada é muito diferente de pancadaria. Algumas mães dão tapas que mais parecem carinho apenas para marcar posição. O filho nem percebe a dor, somente a bronca. Muitos pais pedem desculpas logo depois da palmada.”

Uma palmada leve, portanto, seria melhor do que uma comunicação ambígua ou a tortura psicológica. Para Rehfeld, o importante para a criança é a incondicionalidade do amor. Ou seja, ela tem de saber que os pais a amam de qualquer maneira, independentemente do que ela faça. Mas nem por isso é permitido abusar. Em geral, os pais batem porque se descontrolam. E se descontrolam porque não deram limites na hora certa – e, portanto, a criança perde os parâmetros e extrapola. Outros batem por pura falta de informação. Por exemplo: a criança põe a mão na tomada e leva um tapa para “aprender” a não fazer isso. No fundo, o erro é do adulto. “É besteira dar um tapa em uma criança pequena quando ela está prestes a colocar o dedo na tomada ou brincando perto da janela. Ela não sabe o que é choque elétrico e apanha sem entender. Quem merece apanhar é o pai que deixa tomadas e janelas sem proteção”, alfineta Maria Amélia.

Conversa – Em meio a tantas opiniões e, ao mesmo tempo, massacrados pela crítica de que não sabem colocar limites, os pais ficam perdidos entre a maneira mais indicada (ou menos errada?) de educar. Vários especialistas concordam que uma forma é conversar, ouvir a criança e expor de maneira clara o que é certo e o que é errado. No meio de um acesso de raiva – momento em que a criança se desliga do mundo e entrega-se ao drama –, é importante fazê-la pensar e ouvir seus argumentos. Para crianças bem pequenas, o melhor é desviar o foco de atenção, dando-lhes um brinquedinho ou mudando-as de ambiente. Não adianta tentar explicar muita coisa, já que elas provavelmente não vão entender nada. Mas tapa, nem pensar.

Chiliques de crianças maiores também não precisam ser resolvidos com violência. Um jeito bastante eficiente, ensina a educadora Tânia Zagury, é não ficar assistindo ao ataque. “Em primeiro lugar, deve-se colocar a criança em segurança. Ou seja, tirá-la de perto de qualquer perigo como cadeiras ou paredes, porque muitas vezes elas chutam objetos e se machucam”, diz Tânia. “Depois, o melhor é tentar manter a calma e dizer ao seu filho que você não irá assistir àquela cena. Quando ele se acalmar vocês irão conversar. Sem platéia, não há espetáculo. Em pouco tempo, a cena termina”, conclui. Depois de tudo apaziguado, se a criança tocar no assunto, é importante conversar. Senão, não é preciso necessariamente voltar ao tema da crise. Tânia faz parte de um grupo de educadores que se empenham em estudos e obras na tentativa de ajudar os pais na difícil tarefa de educar. Ela acaba de lançar um livro intitulado Limites sem trauma (Ed. Record), no qual apresenta de maneira didática as melhores formas de se definir limites. Mãe de dois adolescentes, ela nunca lançou mão da palmada. E, garante, não se arrependeu. “Os pais têm a ilusão do resultado imediato, mas não conseguem resultado educacional.”

Castigos – Muitos pais, entretanto, preferem aplicar castigos no lugar da palmada. Conforme a cartilha do Lacri, este tipo de punição pode ser utilizado quando a criança tiver pelo menos três anos, idade em que já associa o castigo ao motivo. “O importante é tirar da criança algo de que ela goste”, sugere Cacilda Paranhos. Sempre que possível, deve-se manter relações lógicas entre a natureza da malcriação e a penalidade conferida. “Não adianta instituir que o castigo será sempre tirar a sobremesa. Cada coisa errada que a criança faz deve ser tratada de forma diferente”, ensina Cacilda. Se o problema for boletins cheios de notas vermelhas, por exemplo, o videogame pode ser abolido. Afinal, o tempo gasto com o jogo deveria ser substituído por estudo.

O jornalista mineiro Luís Lobo concorda que o castigo faz parte da educação. Mas é bastante cauteloso quando fala na maneira de aplicá-lo. “Os pequenos de até cinco anos devem ser punidos no momento da falta. E não é aconselhável transferir o castigo. Dizer, por exemplo, ‘você vai ver quando seu pai chegar’ provoca medo e não respeito”, afirma Lobo. Ele defende que o castigo nunca deve estar ligado a ações cotidianas. Por exemplo: mandar a criança parar de fazer bagunça e, se ela se recusar, pôr na cama como castigo. “Ela vai ligar o ato de dormir a algo ruim”, explica. Radicado no Rio de Janeiro, pai, avô e autor de vários livros sobre educação infantil, Lobo afirma que nunca deu uma palmada em seus filhos. “Acho covardia. Mas beliscão é pior ainda. Humilha”, opina. Cabe aos pais, portanto, manter a calma e refletir sobre a posição dos especialistas. Os futuros adultos agradecem.