Ao sair da cabine de votação em Austin, no Texas, na manhã da terça-feira 7, George W. Bush, governador do Estado e candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos, sapecou: “Agora, é esperar a voz do povo!” O chavão surrado soaria horas – e dias – mais tarde como verdadeira maldição. A espera seria longa, angustiante e dramática. O pior é que ninguém conseguiu entender o que o povo estava falando. As eleições presidenciais americanas se transformaram numa Babel, com tantos eventos extraordinários, suficientes para compilar um almanaque de excentricidades. Por exemplo: um morto foi eleito senador pelo Estado do Missouri. E ganhou o mandato! O ex-governador do Estado, Mel Carnahan, morto há menos de um mês num desastre de avião junto com seu filho, recebeu 32% dos votos. Sua cadeira no Senado será passada como herança para sua viúva, Jean Carnahan. Também pela primeira vez na história do país, uma primeira-dama foi eleita senadora: Hillary Clinton ocupará uma das vagas de Nova York no Senado. E mais: o candidato anti-semita Pat Buchanan recebeu uma de suas maiores votações num bolsão de eleitores judeus. Um engano que poderá custar a Casa Branca ao democrata Al Gore Jr. As redes de televisão contribuíram com várias estrofes para este autêntico samba do gringo doido. Num intervalo de 12 horas, declararam Gore e Bush como vencedores no concorrido e importante Estado da Flórida – capaz de determinar o futuro presidente. Mais de uma vez, voltaram atrás nestas previsões. Gore chegou a telefonar para cumprimentar seu rival. Duas horas mais tarde, ligaria novamente para retirar o que dissera. No final, ninguém sabia quem fora eleito presidente da maior potência do mundo. Sua identidade pode continuar envolta em mistério por muito tempo.

Disneydemocracia – Os Estados Unidos exportam seu modelo de democracia quase do mesmo modo, digamos, como o fazem com a Disneyworld. Nesta eleição, a impressão que se teve foi não apenas a do encanto com os brinquedos e efeitos especiais, mas a de se espiar pela primeira vez os mecanismos que fazem o parque funcionar. As casas das máquinas são, é claro, muito menos glamourosas, mas podem provocar fascínio. Assim, o castelo encantado de Branca de Neve, com um simples movimento de chaves, pode se transformar numa sala de espelhos distorcidos. Muita gente – inclusive grande parte dos americanos – ficou sabendo, por exemplo, que nem sempre quem ganha, leva: a maioria dos votos populares não garante a Presidência. Al Gore, segundo as últimas projeções, terá 0,1% a mais de preferências do que seu rival. Mesmo assim, George Bush poderá obter os 270 delegados eleitorais – de um total de 538 – necessários para se eleger. Isso porque os Estados Unidos da América constituem uma espécie peculiar de democracia representativa. “Aqui, as pessoas não decidem diretamente. Elas escolhem outras pessoas para tomar decisões por elas”, analisa o professor Henry Graf, especialista em história eleitoral, da Universidade de Columbia. Ou seja: a votação para presidente é indireta, feita através de delegados reunidos num colégio eleitoral, mais ou menos nos moldes do que se tinha no Brasil durante a ditadura militar. É possível que, por causa do tamanho da confusão criada, os americanos comecem um movimento por “Diretas Já!”.

Também por isso os seis milhões de eleitores que compareceram espontaneamente às urnas locais deram à Flórida um status incomparável. O Estado, governado por Jeb Bush – irmão do candidato republicano –, tem 25 delegados no Colégio Eleitoral. O candidato que obtiver maioria dos votos leva a tropa toda. E este número de delegados é exatamente o que falta para Gore ou Bush completarem a soma de 270 votos no Colégio. Quem ganhar ali será o próximo presidente americano. O problema é que ninguém sabe ainda o resultado local.

Às 20 horas da noite de terça-feira 7, as emissoras de tevê americanas, baseadas nas pesquisas de boca-de-urna, projetaram Al Gore como vencedor na Flórida. A família Bush, que resolvera fazer um jantar íntimo numa churrascaria de Austin (Texas), perdeu o apetite ao ver as projeções na telinha. O governador Jeb Bush chegou a chorar. Nas duas horas seguintes ficaria delineada uma vitória de Gore – que levou também os Estados de Michigan e Pensilvânia, juntando um exército de delegados eleitorais. Sabia-se que Nova York e Califórnia – os que têm maior número de delegados – estavam no bolso dos democratas. Assim, ficaria difícil para Bush.

“Barriga” – Os telefones republicanos quase derreteram de tanto trabalho naquelas horas. O esforço valeu a pena: descobriu-se que as televisões haviam errado feio nas previsões e deixaram de lado vários municípios conservadores com milhares de votos para George Bush. Pouco antes das 22 horas, as emissoras – depois da bronca republicana – corrigiram o erro e voltaram a colocar a Flórida na lista dos Estados cujos resultados não se podiam prever. As horas se passaram e o país entrou em hipertensão. Pela madrugada, às 2h30, os âncoras exaustos e descabelados anunciavam que George W. Bush havia levado a Flórida e era o 43º presidente americano. Vários jornais e televisões de todo o mundo – inclusive do Brasil – que, como de costume, acompanhavam os acontecimentos via CNN, seguiram atrás. No jargão jornalístico, quem fez isso “comeu barriga”.

“Este foi o maior exemplo de irresponsabilidade e desserviço cometido pela imprensa deste país nos últimos 10 anos”, dispara Tom Rosentel, do Center for Excelence of Journalism, um organismo de análise crítica da imprensa. “A pressa em dar a notícia não apenas serviu para confundir o país num assunto tão grave quanto quase provocou uma crise política sem precedentes”, diz Rosentel. Ambos os candidatos prepararam seus respectivos discursos e seguiram para a concentração de correligionários que os aguardava – republicanos em Austin, Texas, e democratas em Nashville, Tennessee. No final da caravana de carros que acompanhava Gore, um seu assessor recebeu mensagem no aparelho de bip anunciando que a diferença de quase 50 mil votos a favor de Bush havia evaporado e a eleição não estava perdida. A notícia provocou uma corrida maluca para impedir que Gore anunciasse sua aceitação da derrota. O discurso desastrado só foi abortado quando Gore estava a 100 metros do microfone. Do local, ele ligou novamente para o rival republicano para dizer que as circunstâncias haviam mudado muito.

“O senhor está querendo me dizer, senhor vice-presidente, que está retirando sua concessão?”, diria um Bush incrédulo. “Você não precisa ficar nervosinho”, disparou Gore. Bush ainda argumentou que seu irmão Jeb garantia que a vitória republicana era inconteste no Estado. “Deixe-me explicar uma coisa. Seu irmãozinho não é a autoridade maior nesta questão”, respondeu Gore. E assim ficou o dito por não dito. E o democrata tinha razão. De acordo com as leis da Flórida, numa eleição onde a diferença entre candidatos é de até 0,5%, exige-se recontagem de votos. Naquele momento, apenas 1.784 votos separavam os dois concorrentes.

Vantagem reduzida – A recontagem começou já no dia seguinte. Até o encerramento dos trabalhos na quinta-feira 10, aquela diferença caíra para meros 327 votos. Nada menos do que 2.520 votos haviam revertido para o democrata, enquanto 1.063 foram para o republicano. O fato de as cédulas eleitorais não serem padronizadas nos EUA complicou ainda mais a equação. No município de West Palm Beach, uma comunidade democrata, de judeus aposentados, as cédulas apresentavam um desenho heterodoxo, onde o nome do candidato de extrema direita, Pat Buchanan, aparecia muito próximo ao de Al Gore. “Era muito difícil distinguir os círculos dos candidatos Gore e Buchanan para serem perfurados corretamente”, disse a ISTOÉ o eleitor local Sidney Jack Woogen. O resultado é que 3.400 pessoas votaram em Buchanan, pensando que estavam votando em Gore. Pior: 15 mil eleitores perfuraram os círculos dos dois candidatos sem querer, anulando todos estes votos. Seria a soma que daria a vitória a Gore. Os democratas mandaram uma equipe de advogados de primeiro time preparar processos judiciais para tentar nova votação.

AP
Defunto bom de voto:
Jean Carnahan assumirá a vaga do
marido Mel, morto mas eleito senador

“Será difícil que isso aconteça. Os juízes costumam ser de opinião de que as pessoas têm a obrigação de saber votar corretamente”, disse a ISTOÉ o prefeito de Nova York Rudy Giuliani. “O problema é que a Flórida é um bolsão de fraudes eleitorais. O maior escândalo do gênero aconteceu há três anos na eleição para prefeito de Miami. Um candidato saiu vencedor, mas foi contestado na Justiça e não só perdeu o cargo como foi preso. Não seria de se estranhar se irregularidades fossem comprovadas agora. Como é que se explica, por exemplo, que Gore tenha subitamente ganhado 2.234 votos na recontagem?”, diz o professor Terence Anderson, da Universidade de Miami. É como disse o comediante Jay Leno: trata-se da República de Bananas da Flórida. “Acho que a decisão no Estado vai acabar vindo dos tribunais. Pode ser que não saibamos quem será o próximo presidente antes do Natal”, diz Anderson.

Nesta turnê pelos mecanismos da democracia à americana, descobre-se também que algumas máquinas estão enferrujadas, outras funcionam a manivela, e algumas ainda mantêm o pré-histórico sistema da grafia feita à mão. No Estado do Oregon, 40% dos votos são feitos em cédulas previamente obtidas pelos eleitores e colocadas no correio.

Falou-se à exaustão sobre o papel da massa de eleitores indecisos nesta campanha, para no fim se descobrir que “indecisa” seria apenas a própria eleição. Não por culpa dos votantes: cerca de 100 milhões deles foram exercer seu direito constitucional, num comparecimento de quase 50%, superior aos números de anos anteriores. Os candidatos gastaram cerca de US$ 3 bilhões, o que dá uma média de US$ 30 por eleitor. Tanto dinheiro e não se sabe ainda nem quem ganhou o prêmio.

Os sobrinhos do Tio Sam no Brasil
Helcio Nagamine
Lesley Gunn voto em Bush como o pai, o empresário Ronald Gunn

Se eu tivesse um filho, ele se chamaria Ronald Reagan Gunn.” A frase, alusiva ao ex-presidente americano, foi dita em tom brincalhão por um americano fanático pelo Partido Republicano que vive há 28 anos no Brasil. Ronald Gunn, 55 anos, vice-presidente da B.S.H. Continental, fabricante dos eletrodomésticos Bosch, Continental e Metal Frio, é um dos eleitores que decidem o maior impasse das eleições americanas neste século. Gunn e sua família votam na Flórida e, por isso, seus votos passaram a valer ouro. Na terra de Mickey Mouse, os últimos votos computados são os dos americanos residentes fora dos Estados Unidos. O empresário foi um dos fundadores no Brasil da Republicans Abroad, entidade que visa propagar os ideários republicanos fora do território americano. A Republicans Abroad faz uma campanha sobre a importância de votar mesmo longe de casa entre a população de três milhões de americanos residentes fora dos EUA. A catequese do voto deu certo na casa de Ronald Gunn. A filha do republicano, Lesley Gunn, 20 anos, votou pela primeira vez em George W. Bush. “Votei porque sei que os Estados Unidos são um país forte, que influencia todos os outros países. Se o novo presidente ampliar o Nafta, por exemplo, isso afetará o Brasil”, disse ela sobre o acordo de livre comércio da América do Norte.

Segundo dados da Polícia Federal, vivem no Brasil cerca de 18.500 americanos. Mas apenas pouco mais de 150 votaram para presidente e vice – eles não votam nos congressistas. São empresários, técnicos, pesquisadores e educadores que votaram pelo correio. No Brasil, não há rivalidade entre republicanos e democratas na hora de incentivar os apáticos eleitores a colocar o voto na caixa do correio. O democrata Paul Levinson, 67 anos, presidente da Democrats Abroad, ajudou na campanha de arregimentação de votantes durante os meses de agosto e setembro em três escolas americanas em São Paulo. Um concurso foi realizado entre os alunos para ver quem obtinha o maior número de registros de pais e amigos. E há também eleitores não filiados – os “independentes”. É o caso de Tom Tryning, 39 anos, criador de um site no Brasil. Há cinco anos por aqui, ele votou em Al Gore, a quem considera um defensor das causas ambientais. “Mas esse é um assunto em que o Brasil não está interessado.”

Quando não há eleições, o trabalho das entidades partidárias democratas e republicanas no Brasil é batalhar pelos direitos dos americanos fora do país. Um dos frutos desse lobby junto aos congressistas em Washington foi conseguir que os netos de americanos também votassem. Por enquanto, não há sinais de que esses cabos eleitorais façam sugestões para mudanças no enferrujado sistema eleitoral de Tio Sam, mas talvez haja algo que eles possam aprender com os brasileiros. Nas últimas eleições municipais brasileiras, tudo ocorreu sem confusão. “Temos o melhor sistema eletrônico de votação do mundo”, assegurou o ministro brasileiro Maurício Corrêa, do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No Brasil, são usadas urnas eletrônicas padronizadas. Neste país de Terceiro Mundo, a informatização do sistema de votação aconteceu em 1996. Fica então aí a sugestão de, quem sabe, enviar técnicos brasileiros para a próxima votação nos EUA.

Kátia Mello
Colaborou Eduardo Hollanda (DF)