A reforma ministerial prometida há cinco meses e desenhada para dar uma nova cara de agilidade e eficiência ao governo Lula foi anunciada ao País na manhã de terça-feira 22. Mudaram apenas dois dos 35 ministros da Esplanada, num monumental anti-clímax para a expectativa nacional. Esmagado pela pressão interna do PT, acuado pela disputa de aliados gulosos no Congresso, atormentado pela dúvida atroz de dispensar amigos e comprometer alianças essenciais para sua reeleição em 2006, o presidente Lula cumpriu uma tortuosa jornada política, desde novembro passado, autorizando consultas, liberando conversas, insinuando opções, para chegar à surpreendente e solitária decisão da semana passada: não decidir nada. “A reforma está encerrada. Vou apenas preencher os espaços vazios”, anunciou Lula aos dois surpresos senadores do PMDB, Renan Calheiros (AL) e José Sarney (AP), o atual e o ex-presidente do Senado, antecipando as escolhas do deputado Paulo Bernardo (PT-PR) para o Planejamento e do senador Romero Jucá (PMDB-RR) para a Previdência. A majestosa montanha da reforma acabou parindo um ou, no máximo, dois sapos. E o “sapo barbudo” dos tempos mais radicais de combate a FHC transformou-se, com dois anos de poder, num pesado e indeciso batráquio. A pesquisa CNI-Ibope mostra, pela primeira vez, queda na popularidade de Lula, que corre o risco de ter que enfrentar um segundo turno em 2006. E Lula mal sabe quantos sapos terá de engolir, daqui para a frente.

A reforma começou a engasgar na véspera, segunda-feira 21, em Curitiba, onde o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), vociferou num ato público: “Se o presidente não assinar amanhã a indicação de Ciro (Nogueira para o Ministério das Comunicações), o PP poderá ser o aliado do PFL. Ou teremos o ministro ou tomaremos posição diferente”, desafiou, num ato de impertinência política sem precedentes na República. Severino voltou à noite para Brasília e seguiu direto do aeroporto para o Palácio do Planalto. “Você disse isso?”, perguntou Lula. “Disse, presidente, disse mesmo. Eu não quis forçar nada nem botar faca no seu pescoço. Mas, se o senhor não nomear o Ciro ministro, eu vou chamar os meus 300 meninos, que me elegeram presidente, e vou derrubar a MP 232…” Irritado, Lula abreviou a conversa, levantou e despediu-se de Severino, com a decisão tomada de encerrar ali mesmo a reforma. No final da noite, numa conversa com o presidente do PTB, Roberto Jefferson (RJ), Lula pediu: “Jefferson, dá uma porrada no Severino.” Sinal dos tempos, Jefferson não deu. Na manhã seguinte, aos cardeais do PMDB Lula desabafou: “Não posso aceitar a pressão de ninguém. Se eu ceder, acabou o governo. Isso, por si só, é suficiente para encerrar a reforma”. A língua desaforada de Severino serviu como uma boa desculpa para o fiasco da reforma, mas seu desfecho era a solução natural para os problemas que atormentavam Lula. A conta não fechava: o PT não admitia ceder nenhum posto e os aliados não tinham o que pedir. “Não há vagas”, dizia o líder do PP na Câmara, deputado José Janene (PR), desconfiado há duas semanas de que a reforma desandara. “Em dezembro, o Zé Dirceu nos ofereceu Esportes. Em fevereiro, trocou pelas Comunicações e aceitou Ciro Nogueira como ministro. O PMDB não topou e o Lula concordou. E o PP acabou rifado. O discurso do Severino é só desculpa”, desabafou Janene.

Desolação – Nem o PT ficou satisfeito com a pífia mexida de Lula. “Por que você não me demite, Lula? É melhor me demitir”, reagiu irritado o ministro da Casa Civil, José Dirceu, na tarde de terça-feira, desolado com o desfecho da reforma, conforme relata o blog do jornalista Ricardo Noblat. “Eu vou embora. Não quero coordenar a campanha da reeleição”, ameaçou, repetindo o que diz nas horas de cava depressão. Colhido em plena decolagem de recuperação política, depois do vendaval Waldomiro Diniz, Dirceu parecia estar retomando a coordenação política. Na noite de segunda-feira, o ministro da Articulação, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), chegou a reunir a equipe para um jantar de despedida, preparando sua volta para a Câmara. Na manhã seguinte, Lula pediu a Aldo para desconsiderar a demissão: “Não vai haver reforma. Volte ao trabalho.” Além de amargar a permanência de Aldo no Planalto, numa função que ele e o PT exigem com exclusividade, Dirceu perdeu todas as apostas que fez. Não emplacou o PP e Ciro Nogueira nas Comunicações, não fez o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) sucessor de Aldo e não cumpriu a promessa feita ao senador José Sarney de acomodar a filha, Roseana, na Esplanada. “O Lula acaba de me informar que o Aldo continua, que o Arlindo Chinaglia (PT-SP) será o líder e que eu estou fora disso. Vou sair de férias…”, ameaçou Dirceu, com cara de velório, a um interlocutor no dia do anúncio. Chinaglia é da corrente Movimento PT, um pouco mais à esquerda da Articulação, de Dirceu.

João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara, fechou com Lula, na noite de
segunda-feira, para assumir a pasta da Articulação Política. Chegou a disparar telefonemas, na madrugada, para dar a boa-nova. Na manhã seguinte, com cara
de sono, foi chamado por Lula à Granja do Torto para ser informado de que tudo estava desfeito. Contrariando o estupor geral, Lula mostrava-se estranhamente animado, quando comentava com assessores, ao longo do dia: “Eu decidi tudo sozinho, nem o Zé Dirceu sabia.”

 José Sarney, outro ex-amigo que pode ser um futuro inimigo, pressentiu a
tormenta na tarde de segunda-feira, ao ouvir a fala rombuda de Severino: “O Lula ainda vai se arrepender muito de não ter apoiado a minha reeleição e a do João Paulo.” Ao ouvir da boca do presidente que a reforma estava encerrada, Sarney reagiu com a elegância que a liturgia do cargo exige. “Fui presidente e sei que, neste momento, as águas estão muito revoltas, a coisa está muito confusa.” Depois, em conversas com amigos, transbordou sua mágoa: “Fui enganado. A Roseana não merecia isso. O cargo lhe foi oferecido, ela não pediu para ser ministra.” A senadora, cogitada para seis pastas diferentes, do Meio Ambiente às Comunicações, passando por Cidades, Turismo, Integração Nacional e Articulação Política, mostrava serenidade ao ser perguntada sobre a reforma: “O presidente foi correto.” Mas, numa dura conversa na tarde de terça-feira no cafezinho do Senado com o líder Aloisio Mercadante (PT-SP), um senador viu o dedo em riste de Roseana – e o tom machucado de uma dama rejeitada.

Os aliados do governo estão preocupados com as consequências deste fiasco ministerial. A reforma tinha dois eixos centrais: a mudança da coordenação política, com a saída de Aldo, e a oxigenação do Ministério. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. “O Sarney é profissional, não vai passar recibo. Mas vai dar trabalho no Senado, onde a oposição já tem 37 votos. E o Aldo, depois de tanto tempo de fritura, não recupera mais sua autoridade política. O melhor para o Aldo era ir embora”, diz um deputado da base aliada, condoído com a situação do ministro e amigo. Já o governador José Reinaldo Tavares, do Maranhão, não se abalou com a rasteira de Lula nos dois desafetos do clã Sarney. “A reforma ficou de bom tamanho. Eu sou um dos vitoriosos do dia”, disse a ISTOÉ, na tarde de terça-feira, horas antes de abrir um champanhe para comemorar o infortúnio de Roseana. Mas ele avisa: “Sarney vai dar o troco em Lula. Esconde a mágoa, mas não perdoa.”

José Reinaldo e mais dez governadores estavam no Congresso para uma reunião com o ministro Antônio Palocci, da Fazenda, convocada pelo presidente da Câmara. Num encontro com o ministro, antes da votação da reforma tributária que unifica 27 leis de ICMS, o governo teve que ceder para arrancar um compromisso dos governadores – sempre apoiados por Severino. Contrariando Palocci, Severino prometeu colocar a reforma em votação na terça-feira 29. E com a ameaça de nova derrota na votação da MP 232, o Planalto já pensa na retirada do projeto. Apesar da reforminha, o governo Lula continua perdido – e engolindo sapos.