A cena é corriqueira. O paciente chega, entrega a receita e o farmacêutico se esforça para decifrar a letra do médico e a prescrição. Agora, uma pesquisa confirmou o que todos sabem: em geral, médicos escrevem de forma incompreensível. O trabalho foi feito pela estudante de medicina Flávia Sternberg, 21 anos, quartoanista da Universidade Federal de São Paulo. Ela deu plantão na saída do pronto-socorro infantil da faculdade e descobriu que até os pediatras, tidos como os especialistas que mais capricham na letra, cometem seus garranchos.

De 100 receitas avaliadas, ela não entendeu palavras ou a dose do medicamento em 12. “Li outras 33 com menos dificuldade, mas não foi muito fácil”, diz Flávia. A caligrafia ruim incomoda farmacêuticos, balconistas e consumidores. “Alguns médicos precisam entender que a receita é um documento do paciente e não uma mensagem para o balconista. Isso é um desrespeito ao doente”, afirma o farmacêutico João Vargas Messias, de São Paulo.

Casos mais gritantes viram queixa nos conselhos regionais de medicina. No CRM/SP, em um ano e meio foram registradas 15 reclamações. Em geral, a punição se resume à aplicação de advertências. A presidente da entidade, Regina Parizi, colocará o assunto em discussão no encontro dos professores de ética médica das faculdades paulistas, neste mês. “Recomendamos às comissões éticas das escolas que discutam a letra usada nos receituários e nos prontuários. Há colegas que não entendem as anotações para continuar o tratamento”, diz.

Além da letra ruim, há o problema das abreviações e siglas. Dificilmente uma pessoa leiga sabe o que significa c.p.v.o 8/8 (um comprimido via oral a cada oito horas). “Muitos pacientes pedem na farmácia as explicações que deveriam obter no consultório”, afirma a farmacêutica Márcia Watanabe, da Droga Raia, de São Paulo. Ela sempre telefona aos médicos para checar dúvidas. A paulista Sônia Aparecida Bezerra, por exemplo, aguardou dez minutos no balcão para que o médico confirmasse o nome e a indicação de uso externo de um creme. “Bastava escrever com letra melhor”, critica.

De acordo com o psicólogo Edilton Fernandes, professor da Universidade Metodista e do Centro de Estudos Grafológicos, de São Paulo, uma das causas dessa escrita ruim é que, durante o curso de medicina, os estudantes precisam escrever com pressa. “As aulas são descritivas e eles anotam tudo com velocidade. Isso altera a forma da letra”, avalia. Ele acredita também que alguns médicos não acham que o preenchimento de receitas faça parte das suas tarefas mais importantes. E outros alimentam um certo fetiche por aquela letra feia, como se fosse uma marca registrada da categoria.