Menos de 48 horas depois das eleições presidenciais americanas do último dia 7, Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Popular (Parlamento) de Cuba, ofereceu o envio de uma tropa de mediadores de seu país para resolver o imbróglio criado pela votação no Estado da Flórida. A proposta foi prontamente creditada ao famoso senso de humor cubano, mas passada uma semana sem que se conseguisse estabelecer a identidade do próximo ocupante da Casa Branca, a idéia até que não parecia tão desprezível. Para os partidários do candidato democrata Al Gore, a ação cubana talvez fosse preferível à da secretária de Estado da Flórida, Katherine Harris, que preside a junta eleitoral local e decide as inúmeras questões pendentes neste processo. Katherine, uma republicana de carteirinha, ex-senadora estadual, e vice-chefe do comitê de campanha do candidato George W. Bush, é vista pelos democratas como uma cabra tomando conta da horta. Deste modo, o país que tem a maior concentração de advogados por habitante foi aos tribunais para decidir quem será seu próximo presidente.

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Filiação republicana da secretária de Estado da Flórida, Katherine Harris, leva partidários (abaixo) de Al Gore a impetrar recursos contra George W. Bush (acima)

Na noite de quarta-feira 15, Katherine encerrou o prazo de aceitação para o envio de novas recontagens manuais feitas pelos municípios (algo em torno de 1.700.000 cédulas), dando como oficial a soma de votos de cada candidato até aquele momento, faltando apenas o cômputo, até o sábado 18, de cerca de 2.200 sufrágios enviados por cidadãos residentes fora do país. Até então, a diferença que separava Al Gore de Bush era de meros 300 votos. A decisão da secretária de Estado republicana pretendia colocar fim a novas verificações manuais de cédulas eleitorais, que quatro condados, todos bolsões democratas, pretendiam realizar. O batalhão de advogados representantes de Gore, capitaneados pelo famoso David Bóies – que conseguiu a divisão da empresa Microsoft acusada de fazer monopólio –, entrou em frenesi e contra-atacou em corte. Alegava-se que Katherine desrespeitou a decisão do juiz estadual Terry Lewis, que procurava coibir decisões autoritárias da secretária estadual nesta questão. Na sexta-feira 17, uma corte federal em Tallahassee apoiou a decisão da secretária Katherine. Com isso, o prazo para conclusão da contagem dos votos na Flórida terminaria no sábado 18.

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Mas a confirmação do 43º presidente americano corre o risco de só ocorrer depois de uma sucessão de marteladas de juízes, num batuque que vai de cortes municipais, passando por todas as instâncias até a Suprema Corte dos Estados Unidos. “A aceitação da apreciação dos argumentos republicanos, feita pela Corte de Apelações de Atlanta, pode abrir as portas para que o processo chegue até a Suprema Corte. Neste caso, na melhor das hipóteses, só conheceríamos o próximo presidente em meados de dezembro”, disse a ISTOÉ o jurista Adam Marthus, da Corte de Apelações de Manhattan. A 11ª Corte de Apelações – com juízes superconservadores – é a mesma que deu parecer favorável à permanência do garoto náufrago cubano Elián González no começo do ano. O vetusto prédio que acomoda a corte em Atlanta poderá receber novamente outro personagem da saga do cubaninho, o advogado Dexter Douglass, representante da família González, que pretendia manter o garoto nos EUA. Douglass agora está ao lado dos democratas, e por isso passou a ser considerado persona non grata pela comunidade cubana de Miami.

Argumentos sólidos – Os pilares que sustentam os argumentos de Bush contra o prosseguimento de recontagens são sólidos e variados. Alegam, por exemplo, que as leis da Flórida determinam prazos fixos para as entregas de resultados eleitorais. E os limites para isso já teriam sido superados. Também argumentam que já foram realizadas duas contagens mecânicas que deveriam ser suficientes. Alertam para possibilidades de fraudes, erros humanos e danos às cédulas que comprometeriam o processo manual de verificação. O comandante das operações republicanas enviado por Bush à Flórida, o ex-secretário de Estado americano James Baker III, foi mais longe: “Corremos o perigo de causar danos irreparáveis ao processo de escolha democrática nesta nação.” Um exagero, é claro, pois o país enfrenta calmamente a situação e, segundo as pesquisas de opinião, 53% dos americanos não se importam com a demora deste processo e querem ver uma decisão justa no final.

País dividido – Esta calma, porém, pode ser aquela que antecede as tormentas. “É inegável que o país está dividido ao meio. De um lado estão as populações das zonas rurais, com suas preocupações sociais conservadoras, que votaram em George W. Bush. Do outro, as grandes massas urbanas, com conceitos de liberdades individuais, mais dependentes de programas sociais governamentais e desejos de manutenção do status da economia atual. O próximo presidente terá de conciliar estes dois universos conflitantes”, diz o professor Henry Graf, especialista em História Eleitoral da Universidade de Columbia. “O Congresso também está dividido. Acredito que o próximo presidente será obrigado a incluir em seu secretariado membros do partido adversário, numa tentativa de reconciliação no país. Mesmo assim, será muito difícil que George W. Bush ou Al Gore consigam cumprir com os programas prometidos em campanha.”, diz Graf.

Democracia indireta

Assim como agora, os Estados Unidos estavam divididos durante o nascimento da nação. Os chamados “pais da pátria” não concordavam entre si sobre o melhor modo de se eleger um presidente. De um lado estavam aqueles que reivindicavam para si esta honra. Outra facção pregava o voto direto das massas para resolver a questão. Foi para quebrar o impasse que a proposta de um colégio eleitoral foi levantada e ganhou força de lei. Hoje, com 50 Estados, o país tem 538 eleitores neste colégio: um para cada membro da Câmara dos Deputados e do Senado, mais três indivíduos representando o Distrito de Colúmbia (Washington, a Capital Federal), que não elege congressistas. Cada Estado ganha um grupo de eleitores no Colégio de acordo com o número de pessoas registradas para votar em seu território. Os membros do poderoso Colégio, na maioria das regiões, também são escolhidos através de votações. Mas cabe aos Estados determinar como a seleção deve ser feita. Qualquer um pode assumir o posto. Gente famosa, como Coreta King, viúva do reverendo Martin Luther King Jr., já fez parte deste clube, na companhia de donas de casa, escriturários, dentistas, juízes e pedreiros. As candidaturas, porém, costumam ser sacramentadas pelos maiores partidos políticos, que dão preferência àqueles correligionários mais fiéis.

A fidelidade, porém, pode ser mais partidária do que constitucional. Ou seja: em muitos Estados os eleitores do Colégio não são obrigados necessariamente a votar no candidato que teve maior número de votos em sua região. Nada menos do que 26 Estados não exigem por lei este compromisso. A Flórida, por exemplo, está neste grupo. Outros 19 Estados, mais o Distrito de Colúmbia, mandam que seus representantes votem de acordo com os resultados das urnas locais. Porém, em toda a história de eleições americanas, apenas seis pessoas ousaram reverter as expectativas.

A cidadã Margareth Mildred, 73 anos, representante do condado de Milwaukee no Colégio Eleitoral, é uma que desrespeitou as regras do jogo. “Em 1988, quando George Bush – o pai – venceu o democrata Michael Dukakis, eu escrevi em minha cédula o nome de Lloyd Bentsen. Foi um protesto contra este antiquado sistema de Colégio Eleitoral”, contou Mildred a ISTOÉ.