Objetos pares no canto do relacionamento seguram o casamento? Um espelho virado para a porta de entrada repele a energia negativa de quem entra? Nem sempre. Empregados cada vez mais na hora de decorar a casa, os preceitos do feng shui (pronuncia-se fong suei) vêm se transformando em uma verdadeira mordaça, deixando até os céticos de orelha em pé toda vez que ouvem um comentário sobre a melhor posição da cama ou do sofá. A milenar arte de harmonização de ambiente, traduzida em português como “vento e água”, buscou no taoísmo sua inspiração: todas as coisas compartilham uma espécie de energia universal, de modo que os fluxos da casa interagem com o morador e vice-versa. Só que as regras estão longe de ser infalíveis e grande parte da sabedoria tradicional se perdeu no trajeto até o Brasil. Utilizado há três mil anos no Oriente, o feng shui aportou em território tupiniquim há pouco mais de cinco anos. Desde então, uma legião de adeptos – em grande parte suscetível a modismos estrangeiros e manias esotéricas – elevou a técnica chinesa à condição de evangelho, confiando piamente na enxurrada de manuais que invadem o mercado. Só na livraria Fnac, em São Paulo, há 84 obras disponíveis. Na loja virtual da Saraiva, contam-se 58 registros.

Obras especializadas prometem municiar o leitor com todo o conhecimento necessário para se tornar um consultor de feng shui. Basta um curso rápido de fim de semana para o aluno se sentir em condições de aplicar sua “sabedoria” e começar a cobrar por isso. Alcione Domite Nicolau realizou um desses cursos em 1997 e logo resolveu fazer uma interferência no escritório do marido. Além de distribuir espelhos pelos corredores, Alcione mandou pintar as paredes de verde e colocou carpete vermelho em todas as salas. “O vermelho deveria atrair dinheiro e o verde trazer calma e harmonia para o escritório. Não houve melhora na situação financeira e os sócios nunca brigaram tanto”, admite. Mais tarde, descobriu que existem diversas escolas de feng shui, contraditórias entre si. “O feng shui que aparece nas revistas esotéricas e na maioria dos livros é muito diferente do tradicional. Foi trazido por adeptos da escola do Chapéu Preto, consolidada na Califórnia por um sujeito chamado Lin Yun”, explica. Em busca do “verdadeiro” feng shui, Alcione acabou conhecendo o mestre australiano Roger Green e o brasileiro Raul de Sorôa, adversários declarados dos métodos norte-americanos. “Hoje em dia, as pessoas querem algo fácil de ser utilizado e que não necessite de grandes esforços. Isso é o que Lin Yun faz. Seu feng shui é tão bem recebido no Ocidente que devemos admitir que ele é um impostor muito bem-sucedido”, escreve Sorôa em seu site.

Ffotos: Alan Rodrigues
Lica não gosta de modismos, mas tudo em sua agência é feng shui, até mesmo o banheiro: “Só falta arrumar namorado”

Encontro – Preocupada com a banalização da filosofia chinesa, a psicóloga Lucyane Campos, de São Paulo, organizou o I Encontro Nacional de Feng Shui no início de outubro. Ela dedica parte de suas palestras a explicar os diferentes métodos de harmonização. “Na China, existe a escola da bússola, que leva em conta o norte magnético da casa para dispor o baguá (leia quadro) corretamente sobre a planta. A escola das estrelas flutuantes, ainda mais complexa, considera o ano de construção da casa, o de nascimento do morador e o relevo do terreno”, conta. “O que chegou a nós foi uma versão criada na Califórnia que não leva em conta nada disso e impõe um mapa de energia único, sempre com o canto do trabalho direcionado para a porta de entrada”, explica. Lucyane considera essa generalização um erro, pois elimina todo o caráter pessoal. “Cada casa é uma casa e cada morador é um morador”, resume.

Ricardo Giraldez
Lucyane faz palestras para explicar os diferentes métodos de harmonização: “Cada casa é uma casa”

Quem mais sofre com o fanatismo dos clientes são os arquitetos e decoradores, que se desdobram para conciliar requinte e equilíbrio em seus projetos. Há alguns meses, o escritório de Marcelo Mujalli foi contratado por Lica Kohlrausch para compor a decoração da L’Equipe Agence, uma agência de modelos recém-instalada na região dos Jardins, em São Paulo. “Não acredito em modismos. Mas o feng shui é milenar. Até a Casa Branca foi projetada e decorada seguindo os preceitos da técnica”, supõe a empresária. Ao contratar Mujalli, Lica apresentou a ele sua guru, Helen Spalter, adepta da tal escola californiana. Para Lica, apesar do terrorismo feito pelos adversários de Lin Yun, os resultados têm sido os melhores possíveis. Ela está radiante com sua nova casa de praia e seu jipe Pajero. “Só falta melhorar a área do relacionamento e arrumar um namorado”, brinca. Mujalli confessa que se sentiu ameaçado com a invasão de fontes e espelhos em seu projeto inicial. “Tive de me adaptar à situação. Nunca tinha trabalhado com uma especialista em feng shui. Agora, quando algum cliente pedir, já tenho a quem recorrer”, afirma. Ele se diz cético, mas não é contra a arte milenar. “Só que a Lica exagerava em alguns momentos. Tive de pedir que ela maneirasse nos badulaques”, confessa. Mas o pote com sal grosso continua sobre a mesa de reunião.

Ao contrário de Mujalli, muitos profissionais da área acreditam que não se pode viver em desacordo com as regras orientais. Alguns até fazem campanha para que o feng shui seja ensinado nas faculdades de arquitetura. A diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Maria Ruth Amaral Sampaio, rebate com afinco a proposta. “O papel da universidade é atender os miseráveis, concentrar esforços em projetos sérios. E não perder tempo com bobagens produzidas para a classe média alta”, diz.

Casca de tartaruga

O baguá é um diagrama dividido em oito setores, relacionados aos diferentes aspectos que regem a vida das pessoas. Trabalho, criatividade e família são alguns deles. Diz-se que um velho mestre chinês se inspirou na casca de uma tartaruga para criá-lo. Grosso modo, para aplicar o feng shui em uma casa, o primeiro passo é sobrepor o baguá à planta arquitetônica do edifício. Segundo os adeptos da escola californiana, o lado do trabalho deve ser posicionado sobre a parede onde está a porta principal da casa, de modo que os outros setores automaticamente recaiam sobre seus respectivos ambientes. Para os defensores do feng shui tradicional, a posição do baguá não depende da porta de entrada, mas do norte magnético, da data de construção da casa e do ano de nascimento do morador, tudo calculado com um instrumento chinês chamado Lo Pan, semelhante a uma bússola. Dependendo dessas especificidades, deve-se, em cada ambiente, potencializar ou reduzir a presença de cada um dos cinco elementos tradicionais: fogo, terra, água, madeira e metal.