Logo após a Segunda Guerra Mundial, 80% dos 200 mil japoneses residentes no Estado de São Paulo acreditavam que o Japão havia vencido o conflito. Por mais delirante, a crença tinha fundamento numa certeza nipônica que atestava a invencibilidade do Exército imperial em 2.600 anos de história. Para eles, as notícias da rendição não passavam de falsa propaganda disseminada com a ajuda de japoneses chamados de derrotistas e considerados traidores da pátria. Como ato de punição, lideranças fanáticas da colônia fundaram a seita ultranacionalista Shindo Renmei – algo como Liga do Caminho dos Súditos –, responsável durante 13 meses pela morte de 23 patrícios cujo pecado era acreditar na incontestável supremacia dos aliados. A saga da Shindo Renmei e de seus tokkotai, guerreiros encarregados da matança, é contada no livro Corações sujos, do escritor e jornalista mineiro Fernando Morais (Companhia das Letras, 344 págs., R$ 31,50).

O título refere-se à sentença endereçada pelos tokkotai às suas vítimas. “Você tem o coração sujo, então deve manter a garganta lavada”, diziam, antes de praticar a execução. Garganta lavada, no caso, era ter o pescoço trespassado pela lâmina de aço dos katanas, sabres em curva com 80 centímetros de comprimento. As execuções, porém, eram na maioria feitas com armas de fogo, embora seguissem o mesmo ritual minucioso que incluía a sugestão de suicídio. Em seguida aos crimes, os tokkotai se entregavam à polícia. “Eles deixavam claro que nada tinham contra o Brasil ou os brasileiros e não eram criminosos comuns. Matavam no estrito cumprimento do dever”, explica Morais. O apego dos japoneses às tradições os tornavam diferentes dos alemães e dos italianos, outros “súditos do eixo” radicados no País. Ao contrário destes, cerca de 90% dos japoneses queriam retornar à terra natal. Um sonho estimulado por espertalhões da própria colônia, que, através de falsificações grosseiras em revistas e jornais, reforçavam a idéia de que o Japão fora vitorioso e constituíra um largo império nos oceanos Pacífico e Índico, entre a Austrália e o Vietnã. Os próprios nipônicos se incumbiam de vender loteamentos nas regiões.

Após os crimes da Shindo, parte da população brasileira reagiu de forma passional e acabou linchando muitos japoneses inocentes. Cidades como Tupã, no interior paulista, por exemplo, foram transformadas em praças de guerra. Morais ouviu falar da organização ao entrevistar uma nissei em Osasco, na Grande São Paulo, que havia sido namorada do empresário das comunicações Assis Chateaubriand, personagem central de seu livro anterior Chatô, o rei do Brasil. Mas revela que só se dispôs a escrever tudo o que descobriu depois de estar “bem documentado”. Afinal, segundo ele, algumas passagens “pareciam realismo mágico”, de tão surpreendentes. Uma delas não coube no livro. O autor conta que, ao entrevistar um senhor japonês, antigo simpatizante da Shindo, perguntou: “O senhor acredita que o Japão ganhou a guerra?” Ele olhou para o escritor munido de um laptop Sony e uma câmera fotográfica Nikon e respondeu: “O senhor acha que um país que tivesse sido destruído na guerra seria a segunda potência tecnológica mundial?” A lógica oriental é mesmo peculiar.