Circulou 50 anos nos salões do poder um homem de andar pesado, personalidade forte e um jeito ímpar de fazer política. Antônio Carlos Magalhães, o ACM, foi peça-chave em três regimes políticos e passou por 13 presidentes da República. Desde que estreou na política em 1956, inseriu-se no governo federal dez vezes e em outras três incomodou na oposição. “Quando se tem brilho próprio, é indiferente estar no governo ou na oposição”, disse certa vez. “Na Bahia, por exemplo, eu sou o poder, o poder gira em torno de mim, estou sempre no poder.” Mas de repente o outono lhe chegou. Foram dois golpes de uma só vez.

Em outubro passado, o inimigo Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito para o poder federal. No Congresso, sua influência caiu drasticamente. O golpe mais duro foi perder a Bahia. Seu candidato, o governador Paulo Souto, perdeu a eleição para o petista Jaques Wagner, no primeiro turno. Pela primeira vez na vida ACM ficou sem chão. Chegou a seu ponto mais baixo; já não tinha domínio sequer sobre seu curral eleitoral. Abatido, ACM caiu doente. Em março internou-se no Instituto do Coração, em São Paulo, com uma grave pneumonia. Voltou ao Incor em abril, com insuficiência renal. Em maio, desmaiou num corredor do Senado. A 13 de junho, internou-se no Incor, com insuficiência cardíaca. Não saiu mais de lá. Entrou em estado crítico. Antônio Carlos Magalhães faleceu às 11h40 da sexta-feira 20, 40 dias antes de completar 80 anos.

É o fim de uma era. Na Bahia, onde seria enterrado no final da tarde de sábado, no cemitério do Campo Santo de Salvador, ACM foi por 39 anos chefe político de primeira grandeza – sendo que nos últimos 16 anos manteve a hegemonia total e absoluta, na economia e na política, algo só imaginável aos babalorixás do candomblé, ou aos extintos coronéis do sertão. Chegou ao Rio de Janeiro aos 32 anos, deputado federal pela UDN, brigando com Juscelino Kubistschek. Conquistou acesso privilegiado ao presidente. Mais tarde, em 1966, deu um tapa num general linha- dura. Como prêmio, o liberal Castello Branco o nomeou prefeito de Salvador; depois, Emilio Médici o nomeou governador da Bahia. Nos tempos da democracia, foi eleito governador da Bahia, virou o ministro mais forte do governo Sarney (Comunicações), retornou eleito ao governo da Bahia, foi eleito senador da República.

O ápice de sua história foi durante o governo Fernando Henrique Cardoso. ACM era o presidente do Senado e seu filho Luís Eduardo era líder do governo na Câmara. Tinha o governador da Bahia nas mãos, dois consecutivos, dois ministros de Estado, Energia e Previdência, os presidentes da Eletrobrás e do INSS – tudo ao mesmo tempo. Em 2001, flagrado violando o painel eletrônico numa votação secreta, renunciou ao mandato. Em 2002, retornou, eleito senador. Mas já não tinha a mesma influência entre seus pares. O fato concreto é que Antônio Carlos foi um dos personagens mais poderosos do Brasil no pós-guerra. Interferiu de forma decisiva naquilo que os intelectuais chamam de establishment e foi a figura mais proeminente de toda uma geração que chegou ao poder com a ditadura militar. Por isso, sua morte carrega uma carga simbólica adicional.

Para chegar onde chegou, ACM cultuou um estilo ousado de fazer política. Quando prefeito de Salvador, subiu num trator e derrubou as casas dos ricaços que haviam construído na areia da praia. De filhote da ditadura, virou ídolo popular. Quando ministro das Comunicações, concedeu emissoras de tevê e de rádio aos parlamentares que apoiassem o mandato de cinco anos para Sarney. Ficou com o estigma, mas assumiu as rédeas do governo. Outro ingrediente era aquilo que ele próprio definia como “o gosto pelo exercício do mando”. O terceiro traço constante em sua biografia é a paixão. ACM agia com o coração. Suas relações pessoais e políticas oscilaram sempre entre o amor e o ódio, sem meios tons. Ele era feito de instintos: o coração mandava na razão e a coragem ofuscava a sensatez. Chegou a ser acusado de matar um genro – algo jamais provado. Perseguiu os inimigos sem dó, mas também se debulhava em lágrimas diante do infortúnio de um aliado.

Passou a vida acreditando em si mesmo. Jogou grandes blefes e, nas maior parte das vezes, teve sorte, muita sorte. Foi o general Golbery do Couto e Silva – a eminência parda do governo Geisel – quem, muito irônico, lhe deu o codinome que carregou para o túmulo: Toninho Malvadeza. Por várias vezes, o cacique baiano tentou divulgar a corruptela de Toninho Ternura. Nunca colou. Num país onde a covardia é aclamada como prudência, a falsidade é tratada como esperteza e a dissimulação dos políticos mineiros é chamada de arte, Malvadeza acabou se destacando como um excêntrico tempero. Eis o segredo de sua ascensão. Foi também a principal causa de sua derrocada. “ACM gerava um sentimento de amor ou ódio, mas, na política, não gerou indiferença e isso é uma qualidade”, define o deputado Gustavo Fruet.

Médico que jamais cuidou de enfermos, Antônio Carlos deixa alguns herdeiros. Os negócios da família, que têm como carrochefe a TV Bahia, afiliada da Globo, já estão sendo tocados pelo filho Antônio Carlos Magalhães Júnior. Ele também é seu suplente. A política, gostaria de ter deixado para o filho Luis Eduardo, falecido em 1998. “Era meu predileto, tinha todas as minhas qualidades e nenhum dos meus defeitos”, dizia ele. Na Bahia, o que restou de seu grupo político vem sendo chefiado por Paulo Souto. São sete deputados federais e 50 prefeitos. Há apenas um ano, o carlismo tinha 370 dos 417 prefeitos, 89% do total. Há cinco anos, o velho babalorixá reapareceu em Brasília com um novo sucessor, ACM Neto, deputado federal.

De início, poucos o levaram a sério. Hoje, muitos avaliam que o jovem Magalhães seria ainda melhor do que o tio Luis Eduardo. Pode ser. Mas ACM Neto, reeleito em outubro com a maior votação do Estado, tem apenas 28 anos. O avô gostaria de lhe passar o bastão. Planejava fazê-lo governador da Bahia em 2010. Agora, terá que ascender com sua própria luz. Leitor dos clássicos, Antônio Carlos sabia que um dia os impérios desmoronam. A grande tragédia da sua biografia seria terminar fraco, esquecido, como seu ídolo Napoleão Bonaparte, contrariando toda a sua história de vida. Ele sonhava perpetuar o carlismo. Ou, pelo menos, resistir lutando bravamente diante dos inimigos petistas, epicamente, perdendo uma eleição. Morreu numa cama de hospital.