Constrangido por acusações pesadas de enriquecimento ilícito e tráfico de influência contidas em um dossiê apócrifo, o secretário da Indústria e Comércio da Bahia, deputado federal Benito Gama (PFL), entregou o cargo na última quarta-feira 29, respingando mais lama sobre o carlismo. ACM anda colecionando más notícias. A filha Tereza Mata Pires, envolvida em negócios suspeitos com o namorado e ex-secretário de Administração Sérgio Moysés, e o assessor para todas as horas, Rubens Gallerani, foram só as últimas manchas na reputação do cacique baiano. No meio da confusão, a guerra pelo espólio político do cacique se acirra.

Com os negócios domésticos sob suspeita, ele está às voltas agora com uma debandada entre os seus aliados. Três deputados estaduais e quatro federais – os pefelistas Leur Lomanto, Jonival Lucas e Roland Lavigne e o pepebista Yvonilton Gonçalves – estão saindo para o PMDB. Um quinto, José Lourenço, está arrumando as malas. Depois de deixar de ser o rei do Congresso, desgastado em sua briga de foice com o presidente do PMDB, senador Jader Barbalho (PA), ACM agora está deixando de ser o rei da Bahia. Na Assembléia Legislativa, o cacique perdeu o controle da oposição. Pela primeira vez a minoria anticarlista tem chance de reunir número suficiente de deputados para abrir CPIs. A briga pelo espólio do carlismo já é um fenômeno tão evidente – e apimentado – quanto o tempero de um acarajé.

A decadência de um reinado de 40 anos, que vem desde a época da ditadura, foi a largada para que três filhotes de ACM começassem a disputar seu espólio: Rafael Tourinho, ministro das Minas e Energia, o senador e ex-governador Paulo Souto e Benito Gama – todos já de olho no governo do Estado em 2002. O vale-tudo conta até com uma guerra de dossiês. A última bala sobrou para Benito Gama, num episódio que ilustra bem as rasteiras e armadilhas que vêm pela frente. Em julho, o governador da Bahia, César Borges, um fiel aliado de ACM, avisou a seu secretário da Indústria e Comércio que um dossiê de 11 páginas chegara à sua mesa. O documento apócrifo acusa Benito Gama de ter enriquecido com a montagem de um esquema de propinas junto a empresários com interesse em investir na Bahia. E requenta velhas suspeitas, como a de que Benito é o verdadeiro dono da Abaeté, a maior empresa de táxi aéreo do Nordeste. O mesmo dossiê foi recebido por ACM, com um ultimato: se em 30 dias não fossem tomadas providências, outras denúncias seriam divulgadas. Os autores do documento se intitulam “empresários da Bahia e de São Paulo” e dizem que dispõem de provas que, mais tarde, serão “disponibilizadas à revista ISTOÉ, ao jornal Folha de S.Paulo e ao governador Mário Covas”.

Fora do lixo – Antônio Carlos chamou o secretário da Indústria e, segundo Benito, disse que o único destino para aquilo era a lata de lixo. No dia do seu aniversário, 4 de setembro, ACM desenterrou o assunto. “Você já sabe de onde partiu aquele dossiê?”, perguntou o presidente do Senado. “Não. Tenho quatro suspeitos. Por enquanto, só suspeitos”, devolveu Benito, desconfiado de pessoas bem próximas a Antônio Carlos. Naquele momento, ele percebeu que o assunto não estava encerrado.

O dossiê produzido para intimidar Benito teve resultado. Na segunda-feira 27, o documento, ao qual ISTOÉ teve acesso, foi parar nos gabinetes da oposição na Assembléia Legislativa da Bahia. Foi uma festa. Benito entregou seu cargo ao governador César Borges e o carlismo saiu novamente chamuscado. Curiosamente, a primeira mesa onde o dossiê pousou, em meados de julho, foi a do secretário da Fazenda da Bahia, Albérico Mascarenhas, ex-subsecretário de Rodolfo Tourinho quando ele comandava a pasta da Fazenda no governo Paulo Souto. Pessoas ligadas a Benito desconfiam de que no documento apócrifo estão os dedos de Tourinho e do empresário Carlos Laranjeiras – um dos donos da empreiteira OAS, empresa da família de ACM. Mas com tantos problemas, tudo o que Antônio Carlos não precisava era que o dossiê vazasse agora. Foi um tiro no próprio pé. “Essa carta é o instrumento de algum covarde”, disse Benito a ISTOÉ um dia depois de se reunir com o governador para pedir demissão em caráter irrevogável. Preferiu alegar assuntos pessoais. “Quem fez isso tem propósitos muito escusos para esconder. Querem tirar o meu espaço político, mas não vão conseguir”, avisou.

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Chicote – Na era ACM, muitas lideranças políticas surgiram à sua sombra. Em todos os casos, sem exceção, o cacique baiano manteve os afilhados sob rédea curta. O senador Paulo Souto, que governou a Bahia entre 1995 e 1998, sentiu na pele o chicote do chefe. Com a reeleição garantida por uma boa popularidade, Souto foi abatido em pleno vôo por ACM, que reservou a vaga para o filho Luís Eduardo, presidente da Câmara e virtual candidato à Presidência. A morte de Luís Eduardo, em abril de 1998, desfez o sonho de Antônio Carlos, mas ele manteve Souto fora do páreo e indicou para a vaga o desconhecido César Borges. Na cabeça de ACM, oito anos para Paulo Souto poderiam representar uma séria ameaça a seu reinado na Bahia. Outras lideranças também ficaram pelo caminho, como o deputado José Carlos Aleluia e o prefeito de Salvador, Antônio Imbassahy. Agora, alguns discípulos decidiram que chegou a hora de desafiar o mestre. Com Paulo Souto em situação privilegiada nas pesquisas de opinião pública, pefelistas tidos como fiéis pupilos de ACM já ensaiam uma mudança de barco. Tudo na maior discrição para não baterem de frente com o chefe decadente.

Herdeiros – O reinado do cacique baiano, porém, tem outros pretendentes. O líder do PMDB na Câmara, deputado Geddel Vieira Lima, é um deles. Ele trocou a tímida e dúbia oposição ao carlismo por uma ofensiva no terreiro de ACM, cooptando parlamentares estaduais e federais até agora fiéis a Antônio Carlos. ACM sentiu mais esse golpe e está fazendo tudo que pode para evitar a debandada. Mas a essa altura ganharam fôlego também as esquerdas e o PSDB que apostam na fragmentação do carlismo para terem chances reais de chegar ao poder. Nos últimos anos, ACM deu as cartas na política nacional e na Bahia. Seu declínio em Brasília está em acelerada contagem regressiva. Em terras baianas apenas começou.

“Eu não sou covarde”
Ricardo Stuckert
Benito Gama: “Não quero desconfiar de ninguém”

Ele começou como estagiário de economia na Secretaria da Fazenda em 1970 e não largou mais o serviço público. Trinta anos depois, com quatro mandatos de deputado federal e três vezes secretário de Estado na Bahia, é um homem rico. Na quarta-feira 29, dois dias depois do vazamento de um dossiê em que é acusado de corrupção, Benito Gama, 52 anos, deixou a Secretaria da Indústria e Comércio. No dia seguinte, conversou com ISTOÉ em seu escritório.

ISTOÉ – O sr. deixou o governo por causa do vazamento do dossiê acusando-o de corrupção?
Benito Gama – Nada a ver.

ISTOÉ – Por que o sr. decidiu sair?
Benito – Eu vim para atrair investimentos para a Bahia e fiz isso. Agora quero trabalhar no Congresso. Saio do governo deixando uma secretaria limpa.

ISTOÉ – Como o sr. tomou conhecimento desse dossiê?
Benito – O governador (César Borges) me mostrou em julho. Quem passou para ele foi o secretário da Fazenda (Albérico Mascarenhas), que também recebeu anonimamente. Essa carta é o instrumento de algum covarde. Eu tenho muitos defeitos e algumas qualidades, mas seguramente não sou covarde como quem fez esse documento.

ISTOÉ – Quando o senador Antônio Carlos Magalhães tomou conhecimento desse dossiê?
Benito – Na mesma época. Ele me disse que jogaria a carta no lixo. Depois me perguntou se eu tinha idéia da origem de tudo isso e eu disse que não sabia. Ele disse que também não.

ISTOÉ De quem o sr. suspeita?
Benito – Quem fez tem propósitos escusos para esconder. Querem tirar o meu espaço político, mas não vão conseguir.

ISTOÉ – O sr. tem informação de que o dossiê pode ter sido produzido pelo ministro Rafael Tourinho (das Minas e Energia) em parceria com um dos proprietários da OAS, Carlos Laranjeiras?
Benito – Não quero desconfiar de ninguém. São homens bem-sucedidos, não têm motivo para fazer uma coisa dessas com ninguém, muito menos comigo.

ISTOÉO sr. é apontado como o verdadeiro proprietário da Abaeté, a maior empresa de táxi aéreo do Nordeste, que cresceu vertiginosamente depois de sua passagem pela secretaria.
Benito – Na Bahia todo mundo sabe que a Abaeté pertence a Milton Tosto e Jorge Melo.

ISTOÉ – A CPI do Narcotráfico investigou a Abaeté e pediu a quebra dos sigilos telefônico, bancário e fiscal do grupo. O sr. interferiu para que essa empresa não fosse investigada?
Benito – Quando o deputado Robson Tuma (PFL-SP) pediu para quebrar o sigilo da Abaeté, procurei-o para saber quais eram os reais motivos para esse pedido de quebra. Ele me disse que tinha sido feita uma investigação da Polícia Federal. A Abaeté estava preocupada com seus clientes e falou com vários deputados com quem eles têm relacionamento em Brasília. Eles não podiam ver seu nome manchado. Esse foi o único objetivo da minha interferência.


ISTOÉ – O dossiê diz que o sr. está rico, sendo dono de shoppings, construtoras, condomínios de luxo, postos de gasolina, terrenos e muitos investimentos. De onde veio esse dinheiro?
Benito – É tudo mentira. Meu irmão é que trabalha com postos de gasolina.

ISTOÉ – O sr. não é sócio da Construtora Lebram, que tem negócios com a Ford?
Benito – Sou amigo do sr. Paulo Lebram, que coincidentemente é meu vizinho.

ISTOÉ – Deputados do PFL baiano estão debandando para o PMDB. O senador ACM está perdendo o controle político no Estado?
Benito – O senador é um líder muito forte isoladamente e partidariamente congrega muito. Evidentemente que ele precisa entrar nesse processo e resolver isso o mais rapidamente possível.

ISTOÉ – O sr. está pronto para ser candidato ao governo da Bahia em 2002?
Benito – Em 2002, vou me candidatar à reeleição (para deputado).

ISTOÉ – Consta que o sr. estaria até buscando financiamento com os bispos da Igreja Universal do Reino de Deus.
Benito – Eu sou católico, fui coroinha quando criança. Quem imagina uma associação dessas está delirando.

ISTOÉ – O sr. é um político corrupto?
Benito – Não, sinceramente não. Já dei provas de que não. Ninguém me aponta com o dedo sujo porque eu repilo qualquer insinuação de corrupção.

M.P.

CPI à vista

Pela primeira vez no Legislativo baiano será investigada uma denúncia contra um familiar do senador Antônio Carlos Magalhães. A reportagem de ISTOÉ sobre o enriquecimento suspeito do ex-secretário de Administração Sérgio Moysés caiu como uma bomba no Estado e levou a Assembléia Legislativa a pedir a investigação de Moysés e de sua namorada Tereza Mata Pires, filha de ACM.

Casada oficialmente com César Mata Pires, um dos donos da OAS, construtora da família do senador, Tereza coordenou o Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) da Bahia em meio a denúncias de favorecimentos e derrame de documentos falsos. A pedido da deputada estadual Alice Portugal (PCdoB) e do deputado federal Nelson Pellegrino (PT-BA), o Ministério Público Federal vai investigar os cinco anos em que Moysés cuidou da administração pública da Bahia. Essa não será a única dor de cabeça do governo baiano. Com a debandada de deputados do PFL para o PMDB, CPIs que atingem ACM podem sair da gaveta. Entre elas a que pretende investigar as falcatruas de Rubens Gallerani, ex-assessor e amigo de duas décadas.

M.P.


 


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