Calada da noite não existe no Pantanal sul-mato-grossense. O silêncio ali é uma sinfonia de assobios de grilos, cigarras, sapos e cantos de pássaros notívagos. De vez em quando ouve-se o ruído da mandíbula de um jacaré abocanhando sua presa. Indiferentes à presença humana, 3,5 milhões de jacarés bóiam no que restou de água durante a seca, que vai de abril a setembro e pode prolongar-se até novembro. Espalham-se pelos 240 mil quilômetros quadrados de argila e água que cobrem parte dos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e por outros 130 mil quilômetros quadrados nos vizinhos Bolívia e Paraguai. Com até 2,5 metros de comprimento, o jacaré pantaneiro raramente morde carne humana – só ataca quando se sente ameaçado ou é ferido – e encabeça a lista das atrações turísticas da região recém-eleita patrimônio natural da humanidade e reserva mundial da biosfera pela Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas (Unesco).

O charco brasileiro abriga uma das maiores concentrações de vida selvagem do planeta. São ao todo 670 espécies de aves, 132 de mamíferos, mais de 300 tipos de peixes, além de duas centenas de anfíbios e répteis. A flora é igualmente rica, com plantas aquáticas para sobreviver às enchentes e gramíneas resistentes à seca, que servem de pasto ao gado. O ciclo das águas rege a vida pantaneira. Na época da cheia, que vai de janeiro a março, hordas de americanos, europeus e sul-africanos voam ao Pantanal para observar, fotografar e gravar o canto de pássaros como o aracuã, o joão-de-barro, a arara-azul, o carcará e o tuiuiú – cujas asas têm envergadura de até dois metros –, um dos símbolos da região ao lado do jacaré. Na estiagem, quem faz a alegria dos turistas são quatis, capivaras, tamanduás-bandeira e emas, que percorrem largas distâncias à procura de alimentos e transformam a paisagem num zoológico ao ar livre.

Harmonia – No verão, a temperatura alta e a falta de ao menos uma brisa fazem do reino das águas uma estufa. Para resistir ao calor, o pantaneiro alimenta-se de muita carne-de-sol e tereré, espécie de chimarrão bebido gelado na guampa, cuia feita com o chifre oco do boi.

Há pelo menos 200 anos a pecuária extensiva é uma das principais atividades econômicas do Pantanal. Nas pastagens a céu aberto, até os animais sofrem com o sol escaldante. A ponto de as garças se esconderem na sombra das patas bovinas e os cavalos se deitarem, rendidos, à sombra das árvores. Há uma perfeita harmonia entre a natureza e o pantaneiro. “Sente-se pois então que árvores, bichos e pessoas têm natureza assumida igual. Todos se fundem na mesma natureza intacta. Sem as químicas do civilizado”, na descrição do poeta sul-mato-grossense Manoel de Barros. Na prática, ser eleito um pólo ecológico internacional significa ganhar mais verbas para estancar parte dos problemas, selar parcerias científicas e preservar o estilo de vida e as tradições do pantaneiro. “Esses títulos devem ajudar a combater o desmatamento e a construção da hidrovia Paraná–Paraguai”, diz Roberto Klabin, presidente da organização não-governamental SOS Mata Atlântica e dono do Refúgio Ecológico Caiman, pousada próxima a Miranda.

Pesca predatória, queimadas, desmatamento, contrabando de animais e desvio de rios são os fantasmas que assombram os alagadiços. A mais grave ameaça é a construção da hidrovia que pretende tornar navegáveis os trechos entre Cáceres, no Mato Grosso, e Nueva Palmira, no Uruguai. “Os barcos para transporte de soja, madeira e minérios são mais profundos do que o leito do rio e por isso as multinacionais comem pelas bordas, passando dragas e dinamitando a curva das águas”, conta o biólogo Alcides Faria, presidente da Ecoa, que reúne 300 ONGs.

O esforço de preservação é feito pelos próprios pantaneiros. À frente do projeto de criação do Parque Natural do Pantanal está Beatriz Rondon, sobrinha-neta do Marechal Rondon e gerente do Refúgio Caiman. Do alto de seu “um metro e 51 centímetros e meio”, botina de couro, faixa paraguaia e cinturão com a navalha de um lado e o revólver calibre 38 no outro (ela não usa na frente dos hóspedes), Beatriz toureia os interesses dos diversos fazendeiros. “A idéia é unir os vários proprietários para criar normas, regras, produtos e riquezas que ajudem a poupar a natureza e a cultura pantaneira”, diz Beatriz, que trabalha em parceria com a Comunidade Européia, dona da verba de US$ 2 milhões destinada à implantação do parque.

Arara-azul – Sem tanta retaguarda, a bióloga Neiva Guedes estuda as araras-azuis há dez anos e conseguiu quase o impossível: reverter o quadro de extinção. A bordo de um jipe doado pela Toyota, ela observa e trata os filhotes que nascem a cada dois anos. Sua técnica de construir ninhos artificiais e vigiar as crias por satélite fez dobrar a população de araras-azuis, que hoje são 3.000. “Vamos esperar dois a três anos para ver o que acontece, já que não aumentamos o número de predadores das araras-azuis”, explica Neiva. Trabalhos como esse são importantes porque interferem na natureza com respeito à fauna e à flora, uma sintonia tão sutil que pode romper-se ao menor sopro.