Na União Soviética, quem se opunha ao sistema era considerado maluco e tratado de acordo com essa avaliação. Assim os gângsteres que dirigiam aquele regime procuravam precaver-se contra os adversários de cujas mãos temiam receber, mais cedo ou mais tarde, os castigos pelos seus crimes. Hoje, os antigos perseguidores dos “malucos” afirmam que, no fundo, sempre concordaram com eles. Em entrevista publicada na ISTOÉ de 19 de novembro, Luiz Carlos Mendonça de Barros me descreve como maluco, “para dizer o menos”.

Num jornal eletrônico, que figura entre os negócios deste mesmo falastrão da tucanalha, cujos acertos telefônicos desvendaram, recentemente, a natureza do regime sob o qual vivemos, o blefe continua. Alega-se que eu prego o fim dos partidos políticos e dos sindicatos, organizações que me dediquei a estudar e a fortalecer como instrumentos indispensáveis da democracia. Franklin Roosevelt dizia querer ser julgado pelo critério de quem eram seus inimigos. Vejam quem são os meus.

Todos os opositores responsáveis pelo rumo que o governo atual impôs ao País nos convencem de que a alternativa que o Brasil precisa tem de ser modesta e sóbria para se tornar viável. Almejo para meu país uma reconstrução abrangente de suas instituições, acompanhada e reforçada pela renovação de seu espírito. Sei, porém, que não é tarefa para já. Tirar o Brasil da estagnação econômica e dar a dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras, que já estão tentando se levantar pela auto-ajuda, as armas básicas da ação – segurança, educação, saúde e moradia – é o trabalho de agora. Significa manter e aprofundar parte do esforço que o governo de Fernando Henrique Cardoso continuou: os compromissos com a estabilidade da moeda, o equilíbrio fiscal e a abertura da economia brasileira para o mundo. Temos, porém, de reconciliar esses compromissos com um caminho que aproveite melhor a energia de todos. Dinheiro bastante para o governo cumprir suas obrigações, tanto com os credores quanto com os cidadãos, só o conseguiremos tributando o consumo e desonerando a produção. Poupança que nos torne mais independentes dos caprichos da finança internacional, só a teremos impondo a quem ganhe mais a obrigação de poupar mais. E criando fundos, privados e públicos, para receber parte deste dinheiro e investi-lo na produção. Com base fiscal mais sólida e poupança maior, poderemos, dentro das regras do mercado, baixar os juros e alongar os prazos da dívida pública, sem desonrar compromisso algum.

Retomada sustentável do crescimento econômico sustentável só haverá quando abrirmos, em favor de uma multidão de empreendimentos emergentes, o acesso ao crédito, à tecnologia e à exportação. É inaceitável escolher entre um Estado que nada faz pela produção e um Estado que, em nome da produção, empresta dinheiro barato a uma panelinha de apaniguados.

Aí, sim, poderemos começar a cumprir a agenda social do País. Na segurança, penas mais severas, impostas em prisões humanizadas. Na educação, associar os governos federal, estaduais e municipais em colegiados que vigiem a execução de investimento por aluno e de desempenho educacional de cada escola. E retreinem os professores, acabando com a decoreba e instituindo um ensino voltado para o cultivo de capacidades conceituais e práticas. Na saúde, redirecionar a maior parte do dinheiro público, desviado para os provedores privados do SUS, ao resgate do sistema público. Em matéria de moradia, regularizar, em colaboração com os municípios, a posse da terra na periferia das áreas metropolitanas e oferecer às populações recursos e conhecimentos para poderem construir.

E, como base política da agenda social, criar um regime de partidos fortes. Ainda que mínimo e moderado, este programa mudaria, a fundo, o País. Daria aos brasileiros meios para ficar de pé. Devolveria ao Brasil a confiança em si próprio. O que pode parecer maluquice, embora não seja, é a esperança, acalentada por quase toda a Nação, de ver condenados e presos os homens que, sob o véu de supostas reformas, radicalizaram nas tentativas de favorecimento, no tráfico de influência e na vazão de informações privilegiadas, tripudiando nos arranjos entre o dinheiro e o poder. Pô-los atrás de grades não é luxo nem devaneio. Será um sinal de que o Brasil entrou na posse de si mesmo.

Para isso, como para tudo de mais urgente no nosso país, só falta um governo que prefira ser admirado em São Paulo a ser admirado em Londres. E que faça o que os Estados Unidos fizeram em vez de fazer o que dizem. Roberto Mangabeira Unger (foto) é professor em Harvard e pertence aos quadros do PPS.