"O mais útil foi descobrir que tu e eu somos a mesma pessoa.” A frase escrita no prefácio do livro O mundo alucinante (Record, 304 págs., R$ 32) descreve o fascínio do autor cubano Reinaldo Arenas pelo seu personagem, o teólogo, escritor e dissidente político Servando Teresa de Mier. Arenas – um ex-perseguido político por ter sido crítico contundente do regime de Fidel Castro – praticamente cunhou um ser autobiográfico em cima do frade dominicano mexicano que, em suas andanças pela América e Europa, presenciou vários movimentos de libertação como a emancipação dos Estados Unidos do império britânico, a independência do México e a Revolução Francesa. Quanto mais fugia, mais sentia-se aprisionado pelo moralismo da época e principalmente pelos governos autoritários. Quando vivo, os tormentos de Arenas eram quase os mesmos que povoaram a vida do pároco. Por haver contestado a aparição da Virgem de Guadalupe, que fundamenta o catolicismo mexicano, Mier foi ferozmente perseguido.

Nascido na cidade mexicana de Monterrey, em 1763, ele voltou ao México décadas depois para então ser o primeiro dominicano preso em sua própria congregação. Conhecido como o frade da “voz de prata”, ele bradou contra a Inquisição e a queima das bruxas. Também questionou a miséria que assolou a Europa no século XVIII enquanto os reinados fartavam-se de luxos. Nos pontos comuns entre autor e personagem, tanto Arenas quanto o frade padeciam de solidão e, para despistá-la, abrigavam-se nas letras. As mortes trágicas, sem querer, igualmente desenharam uma ponte de coincidências. Arenas morreu na agonia da aids, em 1990, nos Estados Unidos. O frade Mier foi vítima dos inquisidores e teve seu túmulo revirado. Sua múmia foi comprada por um argentino e acabou sendo exibida num circo na Bélgica, no final do século passado, como artefato da Inquisição. Não importa o tempo histórico que os separou. Até o final, ambos foram acorrentados por suas trajetórias de inquietudes.