Se ensinar Física é uma tarefa difícil, imagine quando os alunos são deficientes visuais e o professor não ganha um tostão pelo ofício. Missão impossível? Absolutamente. Em maio deste ano, o professor de Física Ronaldo Archer, 60 anos, tornou-se voluntário no Clube do Ledor da Associação de Amigos do Deficiente Visual, em Brasília. Desde que se aposentou, em 1996, Archer sempre sentiu falta da sala de aula. Hoje, ele dá lições gratuitas a quem precisa de reforço escolar, concluir o curso supletivo ou até passar no vestibular. Ao falar de seu feito, Archer não contém as lágrimas. “Duas vezes por semana, saio de casa munido de barbantes e cartolinas, para montar gráficos em alto-relevo, e de muita vontade de fazer aqueles meninos aprender”, conta. Da experiência de Archer e de outros milhares de voluntários, extrai-se uma importante lição: transformar as habilidades pessoais em força de trabalho voluntário ajuda deficientes físicos a superar seus limites. Também auxilia crianças carentes a se distanciar da marginalidade e – porque não – pessoas deprimidas a encontrar na dor dos outros uma maneira de lidar com o próprio problema.

É cada vez mais comum ver alunos do ensino médio desenvolvendo atividades de recreação com crianças carentes e professores aposentados dedicando o tempo ocioso ao outro. Há também muitas personalidades ajudando a quem precisa e, de quebra, fazendo marketing pessoal. Essa disposição tem mudado a cara da assistência social no Brasil. A despeito do tão falado individualismo, o voluntariado no Brasil e no mundo não pára de crescer. Uma pesquisa realizada no Instituto de Estudos da Religião (Iser) pela professora Leilah Landim, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, conclui que, atualmente, 22,6% da população do País, mais de 30 milhões de pessoas, dedica-se ao voluntariado. Um em cada cinco brasileiros faz algum tipo de trabalho não remunerado em escolas, igrejas, hospitais ou comunidades carentes. Para se ter uma idéia desse boom dos serviços de ajuda, há mais de 900 sites recrutando mão-de-obra voluntária. E os candidatos chegam a enfrentar fila para participar.

“Dependendo da região do País e do tipo de trabalho, é preciso esperar até um ano e meio para que o voluntário se una à instituição que quer ajudar”, atesta o economista Stephen Kanitz, que há quatro anos coordena o prêmio Voluntários do Ano. “Quando criamos o prêmio, entrevistamos cerca de dois mil jovens. Apenas 6% estavam envolvidos com trabalhos voluntários. Este ano, aumentou para 10% ”, tabula Kanitz. Na quarta-feira 29, a Kanitz & Associados entregou o prêmio deste ano a oito pessoas. O ex-jogador de futebol Raí foi uma delas. Ele coordena, com o colega de bola Leonardo, a Fundação Gol de Letra, um programa de recreação para 150 crianças de São Paulo. “Ensinamos a molecada a dançar, interpretar, jogar bola e a se familiarizar com o computador. Mas não basta só ajudar. Tem que ter disciplina e seriedade”, conta Raí. No próximo ano, a fundação irá agregar mais 150 crianças de Niterói, no Rio de Janeiro. “Não dá mais para fazer vista grossa frente aos problemas da população”, diz Leonardo.

O estudante Diogo Youssef, 18 anos, também foi premiado pela Kanitz. Ele recebeu o título de melhor estudante-voluntário do ano. Desde 1997, ele passa quatro horas diárias no Centro Educacional Girassol, em São Paulo, que atende crianças de quatro a sete anos. Lá ele pula amarelinha, brinca de roda e ajuda nas lições. “O sorriso de satisfação no rosto delas é o melhor prêmio que pude receber”, diz. O convite de trabalho partiu do Colégio Nossa Senhora das Graças, onde Diogo estuda. Ele conta que nunca foi um aluno exemplar e que a atividade paralela o ajudou a disciplinar-se. “Não posso furar com as crianças. Acabei aprendendo a administrar meu tempo”, reconhece. Há sete anos, a escola oferece aos alunos a oportunidade de trabalhar em quatro centros de recreação para crianças carentes. “Eles realizam uma bela troca. Dão conhecimento acadêmico e ganham experiência de vida”, conta o diretor do Colégio, Eduardo Roberto de Silva. A proposta está funcionando. “As histórias dessas crianças me atraem. São distantes do meu mundo. Devolver ao mar as estrelas que estão na areia pode ser insignificante para o oceano. Mas, para elas, faz diferença”, poetiza o rapaz.

Mobilização – Um dos projetos que atrai mais participantes é o Programa Voluntários, que pertence ao Comunidade Solidária, dirigido pela primeira-dama Ruth Cardoso. São 14 milhões de cadastrados, 34 centros em todo o País e, ligadas a eles, aproximadamente duas mil instituições das mais variadas áreas. “O nosso trabalho é de ponte entre o voluntário e a instituição que ele quer ajudar. Mas existe também um número grande de pessoas que participam individualmente. Emprestar uma xícara ao vizinho é um bom passo para começar a ser voluntário”, prega a coordenadora do Programa, Mônica Corullõn.

O movimento cresceu tanto que a Organização das Nações Unidas decretou 2001 como o ano internacional do voluntariado. Até o dia 5 de dezembro, data de comemoração do voluntariado em todo o mundo, dezenas de eventos e palestras sobre o assunto estarão acontecendo no País. Uma parceria entre a Rede Globo e o Programa Voluntários levará ao ar, na terça-feira, o primeiro portal do voluntário, com links para todos os sites sobre o assunto, dicas e histórias de trabalhos sociais.

Apesar de suas injustiças sociais, o Brasil, neste tipo de trabalho, tem se destacado a ponto de chamar a atenção de voluntários estrangeiros. O professor de Teatro Anders Ödvall largou a Suécia, onde nasceu, para dar aulas de interpretação às crianças do Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. “Sempre atuei em ONGs e a miséria da América Latina me chamava a atenção. Fiquei sabendo do trabalho da entidade Viva Rio com as crianças da favela e vim me juntar a elas”, conta Ödvall, que em junho deste ano encenou a peça Mogli, o menino lobo com 23 crianças.

Cidadania – Para Ricardo Voltolini, consultor do Serviço Nacional do Comércio (Senac) de São Paulo, o atrativo principal do voluntariado brasileiro está no espírito de revalorização da cidadania. “Nos anos 70, a maioria dos trabalhos voluntários estava ligada à militância política e ainda era embrionária. Com o aparecimento das ONGs, na década de 80, o brasileiro foi se acostumando com a idéia de trabalhos não remunerados em prol da sociedade”, lembra Voltolini. “A população percebeu que os setores público e privado não estão dando conta dos problemas sociais e resolveu agir por conta própria”, completa. O consultor organizou, nesta semana, um ciclo de palestras sobre o assunto na sede do Senac. “O crescimento do serviço voluntário indica o início de uma revolução silenciosa no País”, diz Voltolini. Tomara! 

Dor compartilhada
Helcio Nagamine
Allegro conforta
pacientes com glaucoma

A troca de experiências é uma maneira de ajudar no tratamento de pessoas que sofrem de diversos problemas, do alcoolismo à depressão. Como resultado do empenho de voluntários e do apoio de instituições médicas, esse conceito se espalha pelo Brasil. Estão sendo formadas associações de auto-ajuda para dar informações e conforto a doentes. Muitas delas contam com o reforço de gente que viveu dramas parecidos com os dos que buscam auxílio.

Na Associação Brasileira dos Portadores de Glaucoma, Seus Amigos e Familiares (www.abrag.com.br), as dúvidas são esclarecidas por quem também tem a doença incurável. “O trabalho desses voluntários é muito importante porque eles conseguem se aprofundar no tema”, explica Elisabete Fruchi, presidente da entidade. É o caso do advogado Irimar Allegro. Ao se integrar ao grupo, ele ficou mais atento às novidades de tratamento da enfermidade, que exige exames periódicos. “Até no ônibus falo com pessoas que aparentam estar com dificuldades de enxergar”, afirma.

Disposição também não falta às voluntárias da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (www.abrata.com.br). A economista Marili Bardes é uma delas. Sofre de transtorno bipolar de humor, doença que provoca alternâncias no estado de espírito, levando da depressão à euforia. “Estou sempre atrás de informações para os pacientes”, conta. Explicar e entender esse transtorno não é fácil, mas conversar traz alívio.

Lena Castellón