O impecável protocolo inglês reinou do começo ao fim: no grande salão com abóbada de vidro do British Museum, tudo foi perfeitamente ensaiado para parecer casual. Imagens da floresta capturadas pelo carioca Sergio Abranches eram projetadas sobre a parede, enquanto a princesa Alexandra de Kent, prima da rainha Elizabeth II, fazia sua entrada triunfal, apesar do nada britânico atraso de meia hora. No topo da escadaria que ladeia a nova ala do museu, inaugurada em 2000, a princesa cortou a faixa verde-amarela e foi a primeira visitante a passear os olhos pelas 200 peças feitas de pedra, cerâmica, osso, fibras e penas da exposição Amazônia desconhecida, que reúne desde objetos coletados pelos europeus nos primeiros contatos com os índios, no século XVI, até cerâmicas, armas e urnas funerárias encontradas há poucos anos, em escavações arqueológicas. Esta é apenas uma das dez exposições dedicadas à arte e à arquelogia brasileiras abertas nas duas últimas semanas em importantes museus do mundo. As mostras estão espalhadas por Londres, Oxford e Cambridge, na Inglaterra; Paris e Bordeaux, na França; e Washington e Nova York, nos Estados Unidos.

Com objetos que pertencem à coleção permanente de diversos museus, de Berlim a Copenhague, Amazônia desconhecida fica em cartaz até abril de 2002. Amuletos, armas e troféus feitos do crânio dos vencidos buscam reconstruir a história de uma civilização que vive na floresta há pelo menos 12 mil anos. São retratos de uma sociedade supostamente bárbara, que não produziu a arquitetura suntuosa dos incas e dos maias, únicos povos latinos que constam do catálogo do museu britânico. Em vez de opulência, a exibição apresenta elementos dos rituais de cura dos xamãs a partir do uso de substâncias alucinógenas, do sepultamento em urnas funerárias feitas à imagem humana ou animal, e extratos estéticos de uma cultura que privilegia o efêmero em ornamentos, máscaras rituais, tatuagens e pinturas sobre a pele, cujo destino é serem lavadas pela água.

As peças expostas em Londres simbolizam cerimônias que refletem um universo não menos complexo, nem menos refinado do que o das sociedades ditas desenvolvidas, segundo descreveu o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Em um famoso texto, o pensador francês postula que “a atitude mais antiga consiste em repudiar as formas culturais, morais, religiosas e estéticas mais distantes daquelas com as quais nos identificamos. Trata-se da negação, da rejeição do diferente”. Na abertura da exposição, o curador inglês Colin McEwan citou outra frase do pensador francês, em que ele compara a Amazônia à “Idade Média, sem Roma”. Ao contrário do que acontecia no passado, a mostra inaugurada em 25 de outubro não é mais um termômetro do desconhecimento com que os europeus recebem a produção cultural dos povos da Amazônia. Eles eram belicosos, como atestam seus objetos de guerra, o que é mais uma prova de que “não há apenas natureza, há cultura na Amazônia”, conforme explica o antropólogo brasileiro Eduardo Neves, outro curador da mostra.

Difícil entender como a colonização européia dizimou uma população que há 12 mil anos contava quase seis milhões de habitantes, contra os cerca de 350 mil índios de hoje. Nesse sentido, a seleção de peças proporcionou algo de novo aos ingleses acostumados à visão dos expedicionários e aventureiros que se embrenhavam na floresta pelos mais diversos motivos. Foi o mais nobre deles, a reprodução das cores das bromélias e das orquídeas brasileiras, que enfeitiçou a botânica inglesa Margareth Mee, que aos 47 anos iniciou suas jornadas pelas florestas do Brasil, onde viveu 36 anos. Suas aquarelas estão expostas no Kew Gardens Gallery, imenso jardim localizado no sudoeste de Londres, onde há uma minifloresta tropical, com vitória-régia, peixes e um esguicho que simula a umidade da mata em pleno fog londrino.

Aleijadinho – Também pela primeira vez, o museu público mais antigo da Europa, o Ashmolean, em Oxford, abriga uma mostra do barroco brasileiro, movimento artístico caracterizado pelos excessos, que marcou a produção do século XVI ao XVIII. Entre seus maiores expoentes está o gênio de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Christopher Brown, diretor do museu Ashmolean, se mostrava surpreso. “Sou especialista em pintura européia dos séculos XVII e XVIII e nunca soube que existia tamanho apuro técnico, arte expressiva e bem-feita como o barroco brasileiro, especialmente deste aqui”, diz o historiador, tentando pronunciar, sem sucesso, o nome de Aleijadinho. Em duas outras salas estão expostos pequenos oratórios esculpidos em madeira, além de 35 fotografias de momentos de devoção e fé dos romeiros de hoje.

Cangaço – Em tempos de guerra, o Brasil mostra seu lado mais ecumênico nesta série de exposições patrocinadas pela organização BrasilConnects, responsável pela Mostra do Redescobrimento, que celebrou os 500 anos do Brasil. No museu de arte moderna de Oxford, aproveitou-se para mostrar um extrato de artistas irreverentes como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape e Waltércio Caldas. A sisudez inglesa de Cambridge foi quebrada pela exposição de armas dos cangaceiros. Muitas das peças da dupla Lampião e Maria Bonita, como o punhal de prata e o chapéu de couro com moedas bordadas, de 1934, foram emprestadas pelo historiador Frederico Pernambucano de Mello, da Fundação Joaquim Nabuco, do Recife. Em Bordeaux e Paris, na França, figuram lado a lado artistas contemporâneos como Mira Schendel, Tunga e maquetes de um clássico nacional, o arquiteto Oscar Niemeyer.

É no Solomon Guggenheim, num dos endereços mais elegantes de Nova York, porém, que está a principal bandeira da arte brasileira. Nas poucas paredes brancas que restaram, podem-se ver trechos de entrevistas do construtor de Brasília. Mas é no restante do museu que a ousadia cenográfica surge de forma espantosa. Pela primeira vez desde sua construção, em 1959, tingiram-se de preto o teto de vidro e as paredes alvas em formato circular projetadas pelo arquiteto americano Frank Lloyd Wright. Desde o dia 19 de outubro, o ambiente escuro do Guggenheim evoca uma catedral e abriga a exposição Brazil: corpo & alma, onde é possível apreciar peças importantes, de esculturas de Aleijadinho aos parangolés de Hélio Oiticica, passando pelos marcos do modernismo, como Antropofagia, de Tarsila do Amaral. Entre as mais de 400 peças em exibição, dois grandes destaques: o manto de apresentação bordado pelo sergipano Arthur Bispo do Rosário, com o qual ele pretendia se mostrar a Deus no dia do Juízo Final e o altar-mor da igreja Mosteiro de São Bento de Olinda, em Pernambuco, que nunca havia deixado o solo nacional.

Capela – Esculpido sobre cedro e banhado a ouro, o altar de 11 toneladas sofreu as consequências da tragédia de 11 de setembro. Sua visão é estonteante, um marco da opulência do barroco nacional, e a instalação foi uma novela. Transportado em 54 caixas, o altar não ficou pronto para a inauguração, e os técnicos da Fundação Joaquim Nabuco dão um espetáculo à parte para os visitantes. “A proposta era criar um cenário escuro e reflexivo como no Mosteiro de São Bento”, explica o historiador Pernambucano de Mello. Até 27 de janeiro, podem-se ver 350 objetos indígenas, jóias e esculturas produzidas pelos escravos negros e obras- primas de Victor Brecheret, Anita Malfatti, Lasar Segall, Di Cavalcanti, Alfredo Volpi e de artistas contemporâneos como as ilusões visuais criadas por Regina Silveira.

As obras de Regina estão no Guggenheim, mas também foram expostas em outro endereço da arte brasileira, no Museu Nacional das Mulheres nas Artes, em Washington. Ali há 70 trabalhos de 25 artistas, sendo quatro deles homens. Entre os destaques estão as roupas, o berço, o balanço de acrílico e os colares feitos artesanalmente com agulhas, lâminas de barbear e anzóis de pesca pela brasileira Nazareth Pacheco. Suas instalações também foram transpostas para o Museo Del Barrio, no Harlem, onde mora o grosso da comunidade latina de Nova York. Nessa exposição selecionada pela curadora Fátima Bercht estão 63 obras de 21 artistas contemporâneos. É uma amostragem primorosa que vai até 3 de fevereiro, na qual se podem ver esculturas feitas de tela desfiada e suspensas no ar, de Vera Martins, fotografias de Vik Muniz e uma colcha de pedras costuradas por Ana Linnemann. Um momento de paz e reflexão durante tempos tumultuados de guerra.

Embaixador do eldorado nacional

Ele tem pinta de político. Sorriso nos lábios e hálito perfumado por pastilhas de gengibre, distribui abraços e elogios como se estivesse 24 horas diante das câmeras. Ouve críticas de artistas, curadores e índios com a mesma atenção. Meneia a cabeça e concorda com tudo. Sem esconder a ansiedade e os dedos em perpétuo tamborilar, ele então encomenda providências a um time formado por louras exuberantes. Sua vida é um entra-e-sai de reuniões, encontros e coquetéis. Em sua agenda há exibições até 2005. Devagar, Edemar Cid Ferreira só aprecia o vinho, uma de suas paixões, ao lado das coleções de documentos, mapas, moedas e fotos. Dormir é uma palavra quase em desuso no seu vocabulário. Aos 58 anos, Ferreira é adepto das sonecas revigorantes de dez a 15 minutos, no escritório ou no carro. “Coloco na cabeça que vou dormir e pronto, durmo”, ensina.

O banqueiro e economista nascido em Santos festeja seus contatos sociais. Não é à toa que batizou de BrasilConnects a organização que sucedeu a Associação Brasil +500, patrocinadora da Mostra do Redescobrimento. Sua habilidade em articular encontros com ministros, embaixadores e o vice-presidente Marco Maciel impressionou a equipe do Guggenheim. Ao todo, a BrasilConnects desembolsou US$ 8 milhões para montar dez exposições de arte brasileira nos Estados Unidos e na Europa. De onde vem tanto dinheiro? Ferreira explica que são doações de interessados em promover o País lá fora e, numa resposta decorada, recita que “o governo tem outras prioridades e queremos celebrar, preservar e apoiar o patrimônio cultural e ecológico do Brasil”.

A sua agenda inclui patrocínio a eventos ecumênicos e musicais também. Numa missa celebrada em solidariedade à tragédia de 11 de setembro, na igreja Saint Patrick’s, em Nova York, ele foi um dos oradores. No show para celebrar os 40 anos da bossa nova, no Carnegie Hall, ele subiu ao palco para chamar Gal Costa. Se não são intenções políticas, o que move o banqueiro Ferreira em suas andanças como embaixador da arte brasileira? Inimigos, parceiros, assessores e patrocinados são unânimes em apostar no ego e na vaidade como resposta. Qualquer que seja o impulso da locomotiva financeira e diplomática de Edemar Cid Ferreira, ele agora planeja ampliar seus tentáculos para a ecologia. O banqueiro sabe que o meio ambiente será a principal vitrine de marketing do Brasil no século XXI. Pelo menos por enquanto, nem ele nem suas conexões mudaram a convicção da diretoria da Fundação Guggenheim de adiar por tempo indeterminado seu projeto de abrir uma filial em território brasileiro.