Conta a lenda que, ao ver pronto o assombroso afresco do Juízo final – obra-prima de Michelangelo Buonarroti, pintada no coro da Capela Sistina, no Vaticano –, o papa Paulo III atirou-se ao chão e fez uma súplica ao Todo-Poderoso. “Deus perdoe meus pecados quando o dia do Juízo chegar.” A cena ilustra como poucas a força expressiva e o caráter portentoso da arte a serviço do cristianismo. Durante séculos, a Igreja teve entre seus contratados os grandes gênios da pintura, da arquitetura e da escultura açambarcando um dos maiores patrimônios artísticos da humanidade. Mas a forma espetacular com que eram ilustradas passagens da Bíblia e da vida dos santos não visava apenas o ensinamento e a propagação da fé. Através de maravilhas como a da Capela Sistina, buscava-se, acima de tudo, celebrar uma religião vitoriosa, apesar de naquele momento seu poder político se encontrar abalado pela Reforma protestante.

Embora muitos dos artistas empenhados em criar imagens sagradas tenham também se voltado para temas seculares, pode-se falar perfeitamente de uma estética cristã. Ela nasceu no final do século III e, de certo modo, perdura até os dias de hoje. Seus primeiros sinais foram os afrescos e inscrições das catacumbas romanas, na verdade uma simbologia cifrada e ligada à salvação da alma. Mas só a partir de 313, quando o cristianismo deixou de ser uma religião “subterrânea”, as primeiras igrejas de arquiteturas majestosas passaram a ser decoradas dentro de uma linguagem visual bem mais explícita. Foi quando surgiram as representações bíblicas, geralmente em mosaicos e relevos, mostrando um Cristo imberbe, quase adolescente, pregando seus ensinamentos ou realizando milagres.

No início, o tema da Paixão era evitado. Durante a Idade Média, contudo, cenas da agonia de Jesus começaram a se tornar frequentes com o objetivo de induzir o fiel a viver no seu interior o sofrimento do Messias. A experiência arte/religião chegaria ao ápice com o surgimento do gótico e suas belíssimas catedrais, como as de Chartres, Amiens e Notre Dame, as três na França. Segundo o crítico Olívio Tavares de Araújo, este momento representa o apogeu desta estética. “O que marca a arte sob o cristianismo é a mudança de um pensamento antropocêntrico, herdeiro da Grécia clássica, para uma visão teocêntrica na qual Deus se torna o centro do universo, cabendo ao homem louvá-lo com suas obras.” Araújo lembra que na era cristã, especialmente no fim do primeiro milênio, as igrejas ganham formas mais verticais, radicalizando com as construções de estilo gótico, que induzem os fiéis a olhar para cima.

Incredulidade de São Tome c.1601-2/Caravaggio/ óleo sobre tela (106,9×146,05cm) Neues Palais, Potsdam

Telas de Caravaggio e Rafael: visões opostas dos evangelhos

À visão das alturas proporcionada pelas catedrais somava-se o intricado desenho dos vitrais, que narravam as mais importantes passagens dos evangelhos através do belo jogo de luzes e cores. Como a maioria da população não sabia ler, os vitrais góticos funcionavam como uma bíblia dos pobres. Não havia pinturas em profusão porque a arquitetura interna das igrejas não reservava espaço para grandes obras. Em compensação, no mesmo período surgiram, por exemplo, os talentos dos italianos Cimabue, autor da delicadíssima Madonna entronizada com anjos e profetas (c.1280-90) e Giotto, cujos graciosos e límpidos afrescos para a Capela Scrovegni, em Pádua, figuram entre os mais belos já feitos. Volta e meia atacada pela falta de reverência no tratamento dos temas sacros, a pintura de então era defendida especialmente pelos monges franciscanos e dominicanos, que pregavam um estilo direto e claro, que provocasse intensa devoção. Saído de uma ordem dominicana, Fra Angelico levou ao máximo esse preceito. Seu conjunto de afrescos para o Mosteiro de San Marco, em Florença, do qual faz parte a célebre Anunciação (c. 1440-45), encanta pela extrema simplicidade com que retrata a Virgem, a esta altura tão venerada como o próprio Jesus Cristo.

Transfiguração c. 1517 Rafael (460x280cm) Museu do Vaticano, Roma

De Piero della Francesca, passando por Paolo Ucello até Andrea Mantegna e Sandro Botticelli, na Itália, e de Jan van Eyck a Rogier van der Weyen, em Flandres, a arte cristã viveu momentos de esplendor no século XV. Já marcado pelas idéias humanistas do Renascimento, o chamado Quattrocento assistiu ao aparecimento de uma pintura mais racional, tendência que viria a se desenvolver plenamente no século seguinte através de gigantes como Michelangelo Buonarroti – que provocou polêmica ao sensualizar personagens bíblicos –, Leonardo da Vinci e Rafaello Sanzio, o Rafael, cuja Transfiguração (1517) evoca de forma quase milagrosa os mundos material e espiritual. Sua comovente dramaticidade, no entanto, nem de perto atinge a do vizinho século XVII, quando se viveu o último grande momento da arte cristã, coroada pelo fúria criativa do genial Michelangelo Merisi Caravaggio. Mestre do claro-escuro, Caravaggio aplicou à arte a exaltação religiosa da Contra-Reforma, revolucionando os temas sacros ao trocar o simbolismo pelas espetaculares cenas naturalistas. Inspirada numa passagem do Evangelho de São João (“Bem-aventurados os que não viram e acreditaram”), sua tela A incredulidade de São Tomé (1601-2) resume o dilema que sempre acompanhou o cristianismo. Se para um fiel não é preciso ver para crer, não se deve discordar dos frades franciscanos. Eles defendiam que os sentimentos são mais estimulados pelas coisas vistas do que pelas ditas.