Não se há de entender o cristianismo como um fóssil intocável. Mas como um arquétipo vivo que em cada geração mostra virtualidades novas e, no termo, ilimitadas. Nesse sentido cabe perguntar: o que o cristianismo, em comunhão com outros caminhos espirituais, poderá trazer de bom para a preservação da integridade da criação e para um futuro esperançador da humanidade? Eis algumas perspectivas.

Antes de mais nada, o cristianismo oferece aquilo que ninguém e nenhuma sociedade pode prescindir: uma utopia, fundadora de um sentido pleno. A utopia cristã promete o fim do universo e do ser humano que é bom. Não vamos ao encontro de uma catástrofe, mas de uma transfiguração. Portanto, a morte e a cruz não têm a última palavra, mas a vida e a ressurreição. Jesus chamou a essa utopia de Reino de Deus, que significa uma revolução absoluta, fazendo com que todas as coisas realizem suas potencialidades intrínsecas e assim explodam e implodam num absoluto sentido, chamado Deus.

O ódio e o amor – Mas não existe apenas a utopia, o Reino. Vigora também a antiutopia, o anti-Reino. Na verdade, o Reino se constrói no confronto com o anti-Reino, que são forças que desagregam e desviam o ser humano de sua utopia essencial. Ele ganha corpo em movimentos históricos e em pessoas que articulam discriminações, ódios e mecanismos de morte. É nesse nível que se trava a incansável luta entre o sim-bólico e o dia-bólico. Face a esse embate, o Cristianismo testemunha: o dia-bólico, por mais forte que se mostre, não consegue prevalecer absolutamente. O sim-bólico não apenas limita a virulência do dia-bólico senão que se revela capaz de crescer no confronto com ele e assim vencê-lo. A cruz cristã revela a coexistência do dia-bólico (expressão de ódio) com o sim-bólico (prova de amor).

 

Santíssima Trindade c. 1422-1427 Andrei Rublev tempera sobre painel (142x114cm) Tretyakov Gallery, Moscou

Deus é sempre um e único. O único que não se multiplica

Esta estrutura dia-bólica/sim-bólica (caos/cosmos) pervaga toda a realidade e o próprio cristianismo. Nele há negações e contradições. A tradição da teologia sempre falou que a Igreja é “casta meretriz”, casta porque vive a dimensão do espírito e meretriz porque sucumbe, tantas vezes, à dimensão da carne. Apesar desta contradição, intrínseca à realidade, podemos, pois, olhar para o futuro com jovialidade e não com pavor. A luz tem mais direito que as trevas. O caminho está aberto para cima e para frente. E ele é promissor. Em que se funda o triunfo desta utopia? Funda-se no fato de que Deus mesmo entrou em nosso processo evolucionário através de sua encarnação no judeu Jesus de Nazaré. Deus fez-se humano, pobre e excluído. A partir da encarnação, tudo é divino, pois tudo foi assumido por Deus. O que Deus assumiu também eternizou. O universo e a humanidade pertencem definitivamente à realidade de Deus. Somos também Deus por participação. Logo, estamos inapelavelmente salvos de todas as nossas errâncias.

A ressurreição – Onde é o lugar de verificação desta utopia? Na ressurreição do Crucificado. Mas ressurreição não é sinônimo de reanimação de um cadáver, uma volta à vida mortal anterior, como ocorreu com Lázaro, que afinal acabou morrendo novamente. Ressurreição é uma revolução na evolução porque transporta o ser humano ao termo da história, realizando-o absolutamente. Por isso, ela comparece como a concretização da utopia do Reino nesse homem concreto, Jesus de Nazaré. Ele representa uma antecipação e uma miniatura do que será uma ridente realidade no futuro de todos e também do universo do qual somos parte e parcela. O homem latente no processo evolucionário agora virou homem patente no seu termo bem-aventurado. Todos ressuscitaremos. Consequentemente, não vivemos para morrer. Mas morremos para ressuscitar. Para viver mais, melhor e para sempre. Pela ressurreição se responde ao mais entranhável desejo humano, que é superar a morte e viver em plenitude para sempre. Só esse dado revela as boas razões da relevância do cristianismo para o fenômeno humano universal.

Esse acontecimento da ressurreição deslanchou, naturalmente, a pergunta: quem é esse no qual se realizou a utopia? É aqui que começou o processo de decifração de Jesus por parte de seus seguidores. Começaram por chamá-lo de Mestre, de Senhor, de Cristo e de Filho de Deus. Como nenhuma destas palavras colhia todo o seu mistério, arriscaram chamá-lo de Deus, Deus encarnado em nossa miséria. E aí se calaram, reverentes, pois se davam conta de que usavam um mistério para interpretar outro mistério. Ousadia da fé. Essa é a compreensão dos discípulos e de todas as igrejas cristãs.

O Filho de Deus – E Jesus, como se entendia a si mesmo? As indicações mais seguras revelam que possuía a consciência de ser Filho de Deus. Consequentemente invocava a Deus como Pai, especificamente, como Abba, expressão infantil para dizer: “meu querido paizinho”. Os qualificativos que confere a esse Pai são todos maternos, pois possui entranhas, cuida de cada cabelo de nossa cabeça, mostra infinita misericórdia e ama a todos indistintamente, até os ingratos e maus. O Deus-Pai é materno ou o Deus-Mãe é paterno.

Ao descobrir-se Filho de Deus, Jesus nos fez descobrir que somos também filhos e filhas de Deus. Essa é a suprema dignidade, revelada a todos os humanos, por humílimos que sejam, mesmo não professantes da fé cristã. Se filhos e filhas, então somos todos irmãos e irmãs uns dos outros. Esta irmandade universal é a base para o amor, para a fraternura, para o cuidado, para as relações de cooperação, de inclusão, enfim, para o sonho democrático como valor universal.

Todas essas excelências não se realizaram num César no apogeu de seu poder nem em um sumo-sacerdote no exercício de sua sacralidade. Mas num simples operário de subúrbio, pobre e desconhecido, no carpinteiro ou fazedor de telhados, Jesus. Esse foi o caminho de Deus ao encarnar-se. Pobre, Jesus optou pelos pobres, chamando-os de bem-aventurados. Não porque sejam operosos ou bons. Mas porque, independentemente de sua condição moral, os vê como os primeiros beneficiários da ação libertadora de Deus. Deus, sendo um Deus vivo e fonte de vida, opta, desde suas entranhas, pelos que menos vida têm. Ao realizar o Reino começa por eles e depois se abre aos demais. Por isso Jesus podia dizer: “Felizes são vocês, pois o Reino lhes pertence.” Só a partir deles o evangelho emerge como boa notícia de libertação.

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A unidade – Jesus não só optou pelos pobres, mas também identificou-se com eles. Por isso, como Juiz supremo, se esconde atrás deles. “O que tiverdes feito a um desses meus irmãos menores, foi a mim que o fizestes e o que o deixastes de fazer a eles, foi a mim que deixastes de fazer.” A questão dos pobres é tão central que por ela passam os critérios da verdadeira Igreja. Uma Igreja que não confere a centralidade aos pobres e não assume a causa da justiça dos pobres não está na herança de Jesus.

Se alguém se sente Filho de Deus e invoca a Deus como seu Pai, compromete a mesma compreensão de Deus. Diz-se ainda que é somente na força do Sopro, do Espírito, que alguém pode dizer-se Filho de Deus. Então Deus não é mais solidão mas comunhão de Pai, Filho e Espírito. É o que o cristianismo quer significar ao dizer que Deus é Trindade. Não quer multiplicar Deus, pois esse é sempre um e único. O único que não se multiplica. Não estamos no campo da matemática. O três expressa o arquétipo da comunhão perfeita. Se Deus fosse um só haveria a solidão. Se fosse dois, reinaria a separação, pois um é distinto do outro. Sendo três vigora a comunhão de todos com todos. O três significa menos o número do que a afirmação de que sob o nome Deus se verificam diferenças. Diferenças essas que não se excluem, mas se incluem, que não se opõem, mas se põem em comunhão. A distinção é para a união. Se a última realidade é relação e comunhão, entendemos naturalmente o que nos ensinam a física quântica e a cosmologia contemporânea, que tudo é relação e nada existe fora da relação; que tudo comunga com tudo em todos os pontos e em todas as circunstâncias, pois tudo é sacramento de Deus-comunhão-de-Pessoas.

De nada valem essas doutrinas se não se transformarem em experiências e em novo estado de consciência. O cristianismo é menos algo para se compreender intelectualmente do que para se viver afetivamente. Junto com outras tradições espirituais da humanidade ajuda a alimentar a chama sagrada que carregamos. Não somos errantes num vale de lágrimas, mas sob a luz e o calor desta chama nos sentimos no monte das bem-aventuranças, como filhos e filhas da alegria.