O combate à sonegação e à mão-de-obra informal no Brasil tem um inimigo que poucos imaginavam: o governo federal. Por ano, uma média de R$ 400 milhões, vindos de empréstimos do Exterior ou do próprio Tesouro Nacional, são usados por ministérios, agências e outras fundações do governo para bancar o trabalho de cerca de sete mil pessoas. Nenhuma delas conta com carteira assinada e suas remunerações estão livres de recolhimentos para a Previdência e para o Imposto de Renda. O pagamento desses encargos fica por conta da consciência de cada trabalhador. Esse procedimento ocorre graças às chamadas Transferências para Organismos Internacionais, quando o dinheiro de órgãos federais é enviado a entidades de renome no Exterior e volta para o País destinado a financiar projetos dos ministérios, incluindo aí a verba para contratar mão-de-obra. Em tese, o mecanismo seria bem-vindo na medida em que organizações internacionais prestam consultorias para implantação dos programas. Porém, na maioria dos casos, ministérios fingem que precisam do relatório elaborado pelos organismos só para garantir o repasse da verba e preencher o quadro de pessoal, e se verem livres da realização de concursos públicos.

A denúncia dessa prática irregular pelo governo vem do Ministério Público, da Secretaria Federal de Controle, subordinada ao Ministério da Fazenda, e do Tribunal de Contas da União (TCU), onde há pelo menos dez processos condenando o mau uso das parcerias internacionais. “O governo cria a lei de responsabilidade fiscal e paga, por esses acordos, salários maiores que os do funcionalismo”, diz Paulo de Azevedo, assessor técnico do ministro do TCU, Adylson Motta. Há duas semanas, o procurador da República no Distrito Federal, Brasilino Pereira dos Santos, iniciou investigação sobre o tema para apurar, sobretudo, a prática de sonegação fiscal e ausência de contribuição para a Previdência. Já o que mais preocupa o secretário Federal de Controle, Domingos Poubel, é o fato de que não há teto para a remuneração desses profissionais, diferentemente do que ocorre no funcionalismo público. “Quem define a aplicação dos recursos é o ministério, pois os organismos internacionais só repassam a verba. Com isso, fica difícil atribuir a responsabilidade do uso do dinheiro a uma só pessoa”, explica. Na quinta-feira 7, a Secretaria Federal de Controle encaminhou aos ministérios de Relações Exteriores e do Planejamento, Orçamento e Gestão, uma minuta de decreto para regulamentar a contratação de pessoal nesses casos. “Nem todos os convênios são ilegais, mas é preciso ter mais transparência”, diz Poubel.

As organizações internacionais mais utilizadas por Ministérios e órgãos federais são o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organização Panamericana de Saúde (Opas) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Juntas, elas somam cerca de R$ 213 milhões ou 70% do total usado em parcerias neste ano – R$ 303 milhões. E os líderes nesse tipo de transação são os ministérios da Saúde, da Educação, do Meio Ambiente e do Planejamento. Com exceção desta última Pasta, que nega fazer parceria para substituir o servidor público, as três primeiras justificam o uso dos convênios pelo fato de não terem mão-de-obra capacitada e em número suficiente disponível. A Agência de Saúde Suplementar e a de Vigilância Sanitária, por exemplo, são mantidas há um ano por profissionais contratados por esses convênios. No Ministério da Saúde, um em cada seis funcionários não tem vínculo trabalhista. Seu gasto por ano com organizações internacionais é o maior: R$ 200 milhões. A assessoria do órgão diz que o baixo número de servidores com nível superior – apenas 20% do total – e o fato de o ministério não estar realizando concurso público explicariam essas contratações.

A sanitarista aposentada Iraídes Staciarini, 50 anos, testemunhou o problema enquanto trabalhou, de 1979 a 1998, no Ministério da Saúde como funcionária pública registrada regularmente. Apesar de receberem salário superior, muitos de seus colegas, contratados a partir de organismos internacionais, reclamavam da falta de benefícios trabalhistas. “Os contratos eram renováveis. As pessoas iam passando de projeto em projeto e ficando anos no serviço público”, lembra. Assim que se aposentou, Iraídes diz que recebeu uma proposta do Programa DST/Aids para ficar no Ministério e ser remunerada via PNUD. “O salário era maior, mas não aceitei. Lutei a vida inteira contra essa prática”, declara. O Sindicato dos Servidores Públicos no Distrito Federal diz que esse tipo de contratação dá margem ao emprego de parentes e amigos indicados, mas que poucos denunciam os abusos temendo represálias.

O deputado Agnelo Queiroz (PCdoB-DF), responsável pelo levantamento dos dados de Transferências Internacionais no Sistema de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), irá propor uma audiência pública na Câmara com órgãos envolvidos para averiguar denúncias de suposto nepotismo e gastos desnecessários nos órgãos públicos. “Se a parceria internacional visa à contratação apenas de pessoal com notória especialização, não era para os serviços públicos serem tão ruins”, compara o deputado. O artigo 19 da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) estabelece que “os serviços de consultorias somente serão contratados para a execução de atividades que comprovadamente não possam ser desempenhados por servidores da administração federal”.

“As normas do governo têm restringido a realização do concurso”, responde o secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho. “Reconheço a importância de quadro próprio e já estamos planejando um edital de contratação para o Ibama”, explica. Carvalho diz que não teve outra opção, pois sua Pasta não tem sequer um funcionário público próprio, desde que foi criada, em 1994. No Ministério do Meio Ambiente, sete em cada dez pessoas vêm de contratos firmados no Exterior. O restante do quadro é composto por servidores deslocados de outras áreas federais. No entanto, o secretário consegue ver um ângulo “positivo” nessa história toda. O fato de o governo ficar livre dos encargos trabalhistas e tributários é, segundo ele, “uma economia para o Erário público”. “Esses encargos, dentro da realidade brasileira, representariam quase cem por cento de uma folha de pagamentos”, calcula.